sábado, 9 de fevereiro de 2013

A Batalha de Kursk - Parte 1 *068




Por Reinaldo V. Theodoro


INTRODUÇÃO: 

A 2ª Guerra Mundial foi uma hecatombe sem paralelo na história da Humanidade. Ela representou uma violenta ruptura entre o mundo colonialista pós-revolução industrial e o atual, não apenas nos campos social, político, técnico e geográfico, mas, não menos importante, no militar. 

Neste, o grande conflito deixou claro que a máquina havia se tornado o senhor do campo de batalha. Movendo-se no solo ou sobrevoando-o, atacando ou defendendo, a máquina de guerra tornou-se o fator determinante na definição do vencedor. E a vitória sorriria certamente para o lado que soubesse dispor melhor de suas máquinas em função de sua qualidade, quantidade e organização. E embora os combates corpo-a-corpo, idênticos aos travados durante séculos ainda acontecessem, as batalhas decisivas foram disputadas entre homens que não viam os rostos dos homens que estavam matando. 

Nesse aspecto, a batalha de Kursk é um clássico. Poucas vezes na História, 2 exércitos se lançaram com todos os seus meios materiais numa batalha de “tudo ou nada” como essa. Uma batalha em que o primordial não era conquistar ou matar, mas simplesmente destruir as máquinas inimigas. Mais de 10.000 veículos blindados (entre carros de combate, canhões autopropulsados e transportes blindados) se chocaram numa orgia de destruição sem precedentes. Do desfecho dessa batalha, dependia o resultado da luta no front russo, deste desfecho dependia a vitória ou a derrota na guerra. 

A vitória ou a derrota na guerra definiria como a Europa – e o mundo – viveriam as décadas seguintes. Neste aspecto, Kursk pode mesmo ser considerada uma batalha mais importante que Stalingrado ou que toda a campanha do Mediterrâneo. E, no entanto, sem que ninguém soubesse, já estava decidida desde o primeiro disparo. 



PRIMÓRDIOS:

No verão de 1943, parecia que a Alemanha havia se recuperado do desastre de Stalingrado. Durante fevereiro e março de 1943, a brilhante contra-ofensiva de Manstein havia recuperado Kharkov, detido a ofensiva de inverno soviética e estabilizado a linha alemã. O Alto Comando alemão decidiu então manter a iniciativa, realizando uma nova ofensiva. 

Em 13/03/43, a diretiva para a campanha de verão foi emitida. Ela mencionava que os soviéticos certamente atacariam durante os meses de verão e, portanto, a Alemanha teria que realizar uma ofensiva preventiva. O ponto escolhido era o saliente de Kursk, um bolsão com 175 km de extensão em sua base por 135 km de profundidade. Por vários aspectos, a decisão de atacar ali é bastante compreensível. O saliente de Kursk era um trampolim perfeito para o lançamento de futuras operações dos soviéticos, mas estes só recentemente haviam ocupado a região e ainda estavam consolidando o seu perímetro de 580 km. 

Além disso, o ataque, que recebeu o nome código de Fall Zitadelle (“Operação Cidadela”), não foi planejado originalmente para ser um ataque decisivo. Ele seria apenas um de uma série de ataques locais ao longo do front russo.

Contudo, com o passar do tempo, “Cidadela” recebeu cada vez mais prioridade, sendo destinados a ela mais e mais recursos. Tendo em vista a resistência esperada, considerou-se essencial a concentração do maior número possível dos novos blindados, ainda saindo das fábricas. Isso provocou meses de atraso. Se realizada na primavera, ela teria boas condições de sucesso. Mas, quando foi desencadeada, em julho, a situação no bolsão de Kursk havia mudado drasticamente.

A “Cidadela” foi controversa desde a sua concepção. O General Heinz Guderian, Inspetor-Geral das Tropas Blindadas, não queria nenhuma ofensiva em 1943, visando a plena recuperação da arma blindada alemã; o General Alfred Jodl, Chefe do Estado-Maior do Alto Comando alemão (OKW), queria manter suas reservas à mão para responder aos possíveis movimentos dos aliados ocidentais no Mediterrâneo. Do outro lado, o General Kurt Zeitzler, Chefe do Estado-Maior do Exército (OKH) e os Marechais Erich von Manstein e Günther von Kluge, comandantes, respectivamente, do Grupo-de-Exércitos Sul e do Grupo-de-Exércitos Centro, eram favoráveis a ela. Em face da divergência de seus conselheiros, Hitler adiou a decisão. Ele mesmo chegou a admitir que toda vez que pensava no assunto sentia o estômago embrulhado. O mês de abril passou e nada aconteceu. Após mais alguns adiamentos, a decisão foi tomada a 01/07/43, quando Hitler deu a ordem para iniciar a operação a 05/07/43.

Os soviéticos aproveitaram muito bem a indecisão alemã. Eles haviam recebido informes precisos das intenções inimigas de diversas fontes:  “Lucy”, um espião que agia na Suíça e que recebia informações diretamente de oficiais antinazistas nos altos escalões alemães; o Primeiro-Ministro inglês Winston Churchill, que retransmitia os informes da “Ultra” para os soviéticos (embora sem mencionar a fonte); e do próprio serviço de inteligência soviético, que, por sua vez, capturara máquinas de criptografia “Enigma”.

A questão passou então a se decidir entre esperar o ataque alemão e detê-lo ou atacar primeiro e esvaziá-lo. Os soviéticos decidiram pela primeira opção. Reforçaram e fortificaram o saliente como nunca antes se fizera no front russo. O plano prescrevia que os atacantes seriam desgastados ao máximo e então reservas frescas seriam lançadas numa ofensiva própria, que teria todas as probabilidades de sucesso, uma vez que as reservas alemãs estariam então empenhadas ou destruídas. Mas o sucesso desse plano dependia do Exército Vermelho ser capaz ou não de absorver o impacto da ofensiva alemã. 



OS ATACANTES:

O plano alemão era o tradicional (e manjado) ataque de pinças na base do bolsão, simultaneamente ao norte e ao sul dele. O ataque ao norte seria desfechado pelo 9º Exército, do General Walther Model, parte do Grupo-de-Exércitos Centro. Ele contava com 6 Divisões Panzer, 1 Panzergrenadier e 15 de infantaria, além de um regimento com 90 dos novos canhões autopropulsados “Ferdinand” (656º), um batalhão de “Tigres” (505º) e um batalhão do novo canhão de assalto “Brummbär” (216º). 

Ao todo, ele contava com 1.079 blindados de todos os tipos (excluindo transportes e carros blindados). O 9º Exército tinha ainda 3 companhias de veículos de demolição Borgward B.IV e 2 de “Goliaths” (usados para abrir passagem nos campos minados). Encarregado do ataque ao ombro meridional do bolsão, o Grupo-de-Exércitos Sul, do Marechal Manstein, empregaria o 4º Exército Panzer do General Hermann Hoth e o “Destacamento Kempf”, do General Werner Kempf. Essas forças englobavam 5 Divisões Panzer, 4 Panzergrenadier  e 11 de infantaria, além de uma brigada com 200 dos novos tanques “Pantera” (10ª), um batalhão de “Tigres” (503º) e um batalhão de destruidores de tanques “Hornisse” (560º), totalizando 1.581 tanques e canhões de assalto (incluindo 30 tanques lança-chamas Panzer III “Flammpanzer”).

O poderio das divisões blindadas alemãs então variava muito. Enquanto a 18ª Divisão Panzer somava míseros 75 tanques (dos quais 43 obsoletos), a 3ª Panzergrenadier SS Totenkopf contava com 183 máquinas, incluindo uma companhia com 15 “Tigers".

Ao todo, seriam 900 mil homens, 2.700 tanques e canhões de assalto (63% de todos os blindados  alemães no front russo) e 10.000 canhões. A Luftwaffe tinha então cerca de 1.830 aparelhos em operação na área, divididos entre a Fliegerdivision 1, ao norte, e a Luftflotte IV, ao sul.



OS DEFENSORES:

Poucas vezes na história das guerras, um exército teve tanta antecipação dos planos inimigos e se preparou tanto e tão detalhadamente quanto o soviético para a Batalha de Kursk. Cerca de 300.000 civis foram convocados para trabalhar nas posições defensivas, cavando mais de 5.000 km de trincheiras. As linhas soviéticas foram preparadas com profundidades de dezenas de quilômetros em alguns pontos. Foram organizados vários cinturões de defesa, que consistiam de pontos fortes pesadamente protegidos, com canhões antitanques, morteiros e artilharia. 

Diante desses pontos, extensos campos de minas impediam qualquer tentativa de manobra. Dentro do bolsão, o flanco norte era responsabilidade da Frente Central, do General K. R. Rokossovsky, que contava com cinco exércitos de fuzileiros  (13º, 48º, 60º, 65º e 70º), um de tanques (2º) e um aéreo (16º), além de dois corpos de tanques. 

A Frente Central contava com 1.647 veículos blindados de combate de todos os tipos, dos quais 1.155 eram tanques médios e pesados. A aviação contava com 455 caças, 241 aviões de ataque ao solo e 260 bombardeiros diurnos. O flanco sul era defendido pela Frente de Voronezh, do General Nikolai Vatutin, também composto por cinco exércitos de fuzileiros (38º, 40º, 69º, 6º de Guardas e 7º de Guardas), um de tanques (1º) e um aéreo (2º), além de dois corpos de tanques de guardas, totalizando 1.843 blindados de todos os tipos, dos quais 1.621 eram tanques médios e pesados. 

A sua aviação contava com 389 caças, 276 aviões de ataque ao solo e 172 bombardeiros diurnos. Além disso, as duas frentes teriam o apoio do 17º Exército Aéreo da Frente Sudoeste e da Força Aérea Estratégica.

Atrás dessa formidável defesa, estavam as forças da Frente da Estepe, do Coronel-General Ivan S. Konev, destinadas a contra-atacar qualquer penetração que os alemães conseguissem ou lançar uma ofensiva própria, conforme as circunstâncias.

Era composta por cinco Exércitos de fuzileiros (27º, 47º, 53º, 4º de Guardas e 5º de Guardas), um de tanques (5º de Guardas) e um aéreo (5º), além de um corpo de cavalaria. A Frente da Estepe tinha ao todo 1.701 veículos blindados, dos quais 1.380 eram tanques médios e pesados.

Toda a batalha estaria sob o controle direto do Marechal Georgi K. Zhukov, provavelmente o militar de folha de serviços mais brilhante da 2ª Guerra Mundial, sem ter uma única derrota em seu rol a partir da batalha de Khalkin-Gol, contra os japoneses, em 1939. Ao todo, estariam diante dos alemães, somente dentro do bolsão de Kursk, cerca de 1.340.000 homens, 3.300 tanques e canhões de assalto, 2.650 aviões, 13.000 canhões de campanha e morteiros, 6.000 canhões anti-tanque e 920 lançadores de foguetes (o famoso “Katyusha”).



AS TÁTICAS:

A tática favorita dos comandantes de blindados alemães era a “Panzerkeil” (Cunha Blindada), uma formação de vários “V” sucessivos, onde os blindados mais pesados avançavam no “V” da vanguarda, com o vértice apontado para a frente, permitindo que os tanques dotados de blindagens mais pesadas – e que suportariam melhor os golpes das defesas – proporcionariam a ruptura da linha inimiga, permitindo então que os blindados mais leves e a infantaria, vindo atrás, aproveitassem para efetuar a consolidação do terreno e a exploração. 

Esta foi a tática adotada pelo Grupo-de-Exércitos Sul. As divisões blindadas de Manstein tinham frentes de apenas cerca de 3 km, o que lhes permitia uma concentração de 30 a 40 carros por quilômetro. Além disso, como a velocidade era essencial, ele deu ordens para não parar nem mesmo para socorrer tripulações de tanques imobilizados (o que se revelou uma sentença de morte para muitas delas). 


Já o 9º Exército, ao contrário, estava bastante ciente de que teria pela frente fortes defesas antitanques. Model apostou suas fichas no trabalho das equipes infantaria-tanques, no emprego maciço de artilharia e no metódico trabalho de eliminação dos pontos-fortes, para só então lançar suas reservas blindadas. Ele tinha menos blindados que seus compatriotas no sul e havia recebido os mais novos canhões de assalto de apoio à infantaria (o “Ferdinand” e o “Brummbär”). Desse modo, a abertura do ataque se faria com nove divisões, reforçadas com canhões de assalto, das quais somente uma era Panzer (a 20ª). As tropas alemãs de todas as armas foram submetidas a intenso treinamento nas semanas que precederam a batalha, utilizando, inclusive, tiro real e campos minados soviéticos reais. 


Os soviéticos, por sua vez, consideravam que toda defesa era, primordialmente, antitanque. Eles desenvolveram a técnica defensiva usada pelos alemães conhecida como “Pakfront” (Frente de Canhões Anti-Tanques). Cerca de 10 canhões antitanques, normalmente de 76,2 mm, eram agrupados em posições fortificadas, cobrindo a frente de vários ângulos diferentes, mutuamente apoiados e perfeitamente camuflados. 

No apoio a eles havia infantaria, morteiros e artilharia de campanha. E, à frente e em volta deles, havia extensos campos minados (ao todo, foram instaladas 503.663 minas antitanque e 439.348 minas antipessoal ao longo do bolsão). A densidade dos campos minados chegava, em alguns pontos, a 1.700 minas antipessoal e 1.500 antitanque por quilômetro de frente. Além disso, havia destacamentos de engenharia que implantariam campos minados novos à frente de unidades inimigas que penetrassem a linha principal. 


A primeira tarefa dos alemães, portanto, era abrir caminho nos campos minados. Mas os sapadores alemães tinham dificuldades extras. Eles não podiam utilizar detetores de metal, pois os soviéticos utilizavam muitas minas de madeira e papelão. Para piorar as coisas, a região de Kursk é rica em magnetita, a tal ponto que as bússolas não funcionavam direito ali. Com isso, os detetores de minas também não funcionavam, de forma que os alemães teriam que remover as minas literalmente “à unha”.

Havia também os grupos de destruidores de tanques, equipados com fuzis antitanque (já obsoletos, mas ainda úteis contra blindados mais leves), minas magnéticas, “coquetéis Molotov” e cargas explosivas. Enquanto os morteiros, as metralhadoras e a artilharia de campanha mantinham a infantaria longe dos seus tanques de apoio, esses grupos aproximavam-se pelos seus ângulos mortos e usavam todos os seus recursos para incapacitar o blindado inimigo. 

Como os alemães, as tropas soviéticas também foram submetidas a treinamento, incluindo as unidades que mantinham a linha de frente, através do rodízio de pequenas unidades. A ênfase de todo o treinamento era a destruição de blindados, a ponto de Krushchev, futuro premier soviético, mas então membro do Soviet Militar da Frente Central, ter declarado que todo soldado devia saber os pontos fracos do tanque “Tigre” tão bem como sabia o “Pai Nosso”.

Os soviéticos também realizaram um prodigioso trabalho de camuflagem, tanto escondendo instalações reais quanto criando posições falsas. Diversos relatos da batalha dão conta de que os atacantes só descobriam estar num campo minado ou próximo a um ponto forte depois que o primeiro tanque explodia.

Os soviéticos, porém, cometeram um pequeno equívoco: concluíram que o esforço principal alemão seria no norte, tendo aí concentrado mais meios que no sul. Mas, em vista das maciças concentrações de recursos em todo o bolsão, esse erro foi quase insignificante. 

Em ambos os ombros do saliente de Kursk, os soviéticos desfrutavam de superioridade numérica em todos os aspectos. No norte, os defensores tinham uma superioridade de 2:1 em artilharia e de 3:2 em blindados. No sul, a superioridade era de 7:3 em artilharia e de quase igualdade em tanques (sem contar com a Frente da Estepe).

Havia ainda a agravante de que a maioria dos tanques soviéticos era o famoso T-34, em contraste com a maioria de Panzer III e IV dos alemães. E embora os novos blindados dessem aos germânicos a superioridade técnica sobre os soviéticos pela primeira vez desde o começo da guerra, não havia número suficiente deles para compensar as massas de T-34 que logo seriam jogadas contra eles. 

Parte 2 - As Máquinas

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