GNP
Invasão Soviética do Afeganistão
Situado no coração da Ásia, o Afeganistão é um país de
647.497 km², subdesenvolvido a níveis quase medievais, sem ferrovias nem rios
navegáveis. Suas montanhas e vales assistiram ao alvorecer de inúmeras
civilizações, mas o país jamais apresentou uma efetiva unidade nacional: é
antes um mosaico de tribos e etnias, com tradição de rivalidades entre si. As
tribos do grupo patã (pushtu) correspondiam a mais de 60% dos 16 milhões de
afegãos à época da invasão soviética. Seguiam-se os taijiques com 30,7%, os uzbeques
e os hazara, descendentes dos mongóis de Gengis Khan, que invadiu o país no
século XIII e arrasou uma das mais ricas civilizações do mundo islâmico. Haviam
2 línguas oficiais: O pushtu, da etnia majoritária, e o dari, dialeto persa do
grupo taijique.
A diversidade étnica e linguística tem por contrapartida uma profunda unidade religiosa. A quase totalidade dos afegãos é muçulmana: 90% seguem a seita sunita e 9% a seita xiita. Outro aspecto unificador é um ardente sentimento de resistência aos invasores de suas montanhas. Os afegãos aniquilaram 2 expedições britânicas, em 1841 e 1879, antes de seu país se tornar um protetorado submetido ao vice-rei da Índia. Desde o século XIX se chocam no Afeganistão o expansionismo britânico e o russo na Ásia Central; os soviéticos limitaram-se a revestir de matizes ideológicos “progressistas” o projeto do czares.
Em 1920, o país aproveitou-se do desequilíbrio do poder na Ásia após a Revolução Bolchevique na Rússia para recuperar sua independência plena. Um tratado de amizade russo-afegão foi assinado em 1921; nas décadas seguintes o governo de Cabul, a capital, procurou manipular os interesses divergentes de Londres e Moscou, de modo a preservar sua autonomia. Na década de 50, auge da Guerra Fria, essa política de equilíbrio levou o Afeganistão a rejeitar a proposta americana de participação no Pacto de Bagdá, nitidamente anticomunista. Washington ameaçou cortar as remessas de armamentos se o país não se alinhasse com o Ocidente; diante das pressões o Afeganistão recorreu ao bloco socialista.
Em 1956, o primeiro ministro Mohammad Daoud Khan – primo e
cunhado de Mohammad Zahir Shan, rei do Afeganistão desde 1933 – assinou com o
Kremlin um contrato de fornecimento de armas no valor de US$ 25 milhões.
Seguiram-se um empréstimo de US$ 100 milhões, destinados ao primeiro plano
quinquenal afegão, e, em 1961, convênios de treinamento militar com a URSS e a
Tchecoslováquia.
Em 1963, incidentes fronteiriços com o Paquistão resultaram na
demissão de Daoud. No ano seguinte, uma constituição liberal assegurou, pela
primeira vez na história afegã, a liberdade de imprensa e a realização de eleições parlamentares.
Surgiu entre outros, o Partido Democrata do Povo do
Afeganistão (PDPA), de orientação marxista, fundado em 1965. Seu principal
líder era Nur Mohammad Taraki, um intelectual autodidata, nascido em família
nômade. 2 anos depois, o PDPA já se encontrava dividido entre a facção de Taraki
e e a do líder estudantil Babrak Karmal.
Os seguidores de Taraki tentaram atribuir caráter “classista”
ao conflito, pois Karmal era filho de um general ilustre e tinha laços de
parentesco com a família real. Mas também havia fatores étnicos na divisão. A
facção de Taraki, que editava o periódico Khalq (O Povo), era majoritariamente patã, enquanto os partidários
de Karmal, reunidos em torno de outra publicação partidária, Parcham (Bandeira),
pertenciam em geral a etnia taijique. Em termos políticos, os parcham rejeitavam
o radicalismo de Taraki, julgando-o perigoso num país com 92% de analfabetos e
onde 60% dos camponeses cultivavam suas próprias terras.
Em 17 de julho de 1973, um golpe militar apoiado pela facção
parcham, reconduziu o General Daoud ao poder. Este proclamou a República e
procurou impulsionar a reforma agrária e outras mudanças na estrutura social
afegã. Mas essa fase durou pouco: Daoud afastou os parcham dos principais
cargos por eles ocupados, substituindo-os por elementos conservadores. Em julho
de 1975 foi suprimida a liberdade de imprensa; em 1977, os parcham e os khalq
reunificaram o dividido PDPA.
Era, porém, uma unidade precária. No inverno de 1977, o
ex-professor Hafizullah Amin, foi encarregado de estabelecer uma organização
militar clandestina; os oficiais por ele recrutados deviam lealdade à facção
khalq, e só depois ao partido. No dia 17 de abril de 1978, o assassinato do
teórico e escritor parcham Mir Akbar Khyber – um crime jamais esclarecido, atribuído
à CIA – provocou protestos diante da embaixada americana em Cabul. Na noite de
26 de abril, unidades fiéis a Daoud começaram a prender os líderes do PDPA.
Era tarde, ante de ser preso, Hafizullah Amin fez contato
com os quadros militares do PDPA, ordenando-lhe o início das operações. O Golpe
foi desencadeado às 0600 do dia 27 de abril, sob direção do coronel Abdul Qader,
comandante-chefe adjunto da Força Aérea Afegã. Oficiais Khalq lideraram um
intenso ataque de blindados ao palácio presidencial, no qual morreram o
presidente Daoud e pelo menos 17 membros de sua família.
Uma Facção em Crise
De fato, após o afastamento de Karmal, o governo
revolucionário afegão impulsionou reformas apressadas e impopulares, impostas a
ponta de baioneta. Uma destas foi a abolição da usura: como o governo se “esqueceu”
de criar uma fonte alternativa de crédito, os camponeses não puderam comprar
sementes e ferramentas. Uma tentativa de estabelecer idade mínima para o
casamento e fixar numa soma simbólica o tradicional dote da noiva foi
repudiada. O mais grave problema da estrutura rural permaneceu: O controle dos chefes tribais sobre as fontes
de água e os canais de irrigação, fundamento da sua hegemonia nas aldeias.
A oposição armada manifestou-se nas áreas rurais na segunda
metade de 1978. Combates isolados ocorreram no final do ano, mas foi em janeiro
de 1979 que a revolta teve um momento importante, quando derrotou 1000
soldados enviaods por Cabul para refrear
a ação do guerrilheiros da tribo Safi, em Shuncri, no nordeste. Esses rebeldes
faziam parte da organização dos
muçulmanos xiitas anticomunistas (Jamiat-i-Islami) e desejavam para o Afeganistão
um regime nos moldes iranianos.
Em março de 1979, uma passeata de camponeses transformou-se
em sublevação generalizada na cidade de Herat. A guarnição local aliou-se aos
insurretos, massacrando centenas de oficiais e cerca de 50 assessores
soviéticos.
O esmagamento da rebelião de Herat exigiu o emprego de blindados,
helicópteros artilhados e bombardeiros Ilyushin 28, com saldo de mais de 5 mil
vítimas. 3 meses depois, no dia 23 de junho, a revolta contra o “ateísmo
comunista” explodia no bairro xiita de Cabul, sendo reprimida com violência. Em
5 de agosto, unidades blindadas e de comandos tentaram derrubar o governo.
Que a situação deteriorava, Taraki perdia influência para
Hafizullah Amin. Em 16 de setembro, um
tiroteio no palácio presidencial antecedeu o desaparecimento de Taraki. O
governo “por motivos de saúde”; sua morte foi anunciada em 6 de outubro de
1979. Corriam rumores de que fora preso e estrangulado por ordem de Amin.
O novo governo procurou atribuir a Taraki a responsabilidade por alguns “excessos” mais
isso não diminuiu sua impopularidade nem
sua total dependência em relação a ajuda
econômica e militar soviética. Moscou enviada
equipamentos, conselheiros militares e mesmo unidades de combate ao
Afeganistão, em apoio a Amin. Paralelamente, dava os retoques finais num
projeto em andamento desde março de 1979: a intervenção direta.
Alguns analistas ocidentais acreditam que a missão militar
soviética que percorreu o Afeganistão logo após o levante de Herat traçou os primeiros
esboços de um plano operacional de ocupação. Nos meses seguintes, a crescente
instabilidade no Golfo Pérsico, após a derrubada da monarquia iraniana, e a
perspectiva de que o fundamentalismo xiita “contagiasse” as repúblicas
soviéticas da Ásia Central tornaram os soviéticos cada vez mais suscetíveis
quanto à situação crítica em sua fronteira meridional. O brutal assassinato de
Taraki convenceu-os de que era impossível esperar mais.
A decisão de intervir deve ter sido tomada em 26 de novembro
de 1979, numa reunião do Politiburo soviético. 3 dias depois, unidades da 105ª
Divisão Aerotransportada de Guardas começaram a chegar à República Soviética do
Uzbequistão; em 6 de dezembro, já havia 3 batalhões dessa tropa de elite perto
da fronteira afegã.
Afeganistão Invadido
Em 29 de novembro de
1979, o general soviético Viktor Paputin voou para Cabul, presumivelmente com a
espinhosa tarefa de convencer a primeiro ministro Hafizullah Amin a entregar o
governo ao “traidor” Babrak Karmal, exilado de 1978. A autorização para a
entrada de tropas da URSS no Afeganistão, nos termos do tratado de amizade
firmado em dezembro de 1978, também deve ter constado das discussões de Paputin
e Amin. Como era de esperar, Amin resistiu ás pressões – e a recusa selou seu
destino.
Nas semanas seguintes, mais de 100 mil homens de unidades
motorizadas soviéticas, apoiados por blindados e artilharia, ocuparam posições
junto a fronteira afegã. Em 20 de dezembro, os blindados da 105ª Divisão
Aerotransportada de Guardas, sediados na localidade uzbeque de Ferghana,
deslocaram-se para o sul, dominando o estratégico túnel Salang, de 5 km de
comprimento. Por ele costumavam seguir os suprimentos soviéticos para o regime
de Amin. Por ele avançaria boa parte das tropas encarregadas de derrubá-lo.
Ás 2300 de 24 de dezembro unidades da divisão citada
começaram a aterrizar no aeroporto de Cabul, estabelecendo uma cabeça de ponte.
Outras unidades seguiram para a base aérea de Bagram, na periferia da capital e
para a demais bases do país. Durante 2 dias, uma ponte aérea realizada por
aeronaves militares e civis, estes da Aeroflot, elevou para quase 5 mil
soldados soviéticos presentes na capital.
Paralelamente os 1500 conselheiros militares soviéticos presentes
na capital afegã tentaram convencer seus comandados de que tudo não passavam de
um exercício em larga escala. Alguns destacamentos sob controle soviético
receberam munição de festim “para as manobras”. Os blindados de outras unidades
foram imobilizados para reparos ou tiveram suas baterias removidas. Tais
precauções mostram que os soviéticos estavam cientes do sentimento antirusso no
Afeganistão, e indicam o elevado grau de controle das forças armadas do país.
Às 1900 do dia 27, as tropas da URSS na capital prosseguiam
em sua ofensiva. Foram capturados vários pontos-chave, entre os quais o
ministério do interior, sede da temida polícia secreta de Amin, e a central
telefônica. Uma colunas de blindados VBTT deslocou-se de Bagram com o apoio de
peças de artilharia ASU-85 e cercou o palácio Darulaman, protegido por um
regimento de carros de combate. Em seu interior estava o primeiro ministro.
Os acontecimentos subsequentes permanecem controvertidos.
Aparentemente o General Paputin discutiu com Amin e foi baleado por um de seus
guarda-costas. Na defesa do palácio, tomado de assalto por paraquedistas o
primeiro ministro morreu e com ele desapareceram as justificativas de Moscou,
que alegava agir em apoio ao governo deste país.
Por volta das 2300 do dia 28 de dezembro de 1979, o centro
de Cabul estava sob controle soviético. Anunciou-se que Babrak Karmal fora “eleito”
secretário geral do PDPA, enquanto Amin era oficialmente “desmascarado” como
agente da CIA. O novo governo solicitou o imediato amparo soviético nos campos
moral, político, militar e econômico, declarou respeitar a religião muçulmana e
comprometeu-se a levar a julgamento os “carrascos” da polícia secreta de Amin,
acusados de assassinato de 25 mil afegãos.
Nos dias seguintes outras 4 divisões soviéticas chegaram ao Afeganistão.
A 66ª e a 357ª Divisões Motorizadas de Rifles que seguiram para as capitais
provinciais Herat e Kandahar, a noroeste e ao sul do país. A 201ª e a 360ª divisões
cruzaram uma ponte flutuante no rio Amu Darya, de 1 km de largura, e procuraram
estabelecer ligação com as unidades da 105ª Divisão, que rumava para a túnel Salang
a partir de Bagram. As 2 colunas dispunham de VBTTs, carros de combate T54 e T62
e artilharia. A proteção aérea ao avanço era assegurada por várias esquadrilhas
de caça-bombardeiros MiG-23.
No fundamental a oposição as forças soviéticas foi
insignificante. Surgiram relatos de que a 8ª Divisão afegã desenvolveu forte
resistência aos invasores, mas são exageradas as estimativas de ocorrência de 2
mil baixas durante a intervenção. Nos meses seguinte porém, cerca da metade do
40 mil integrantes do exército afegão desertou. A maioria voltou para suas
aldeias, muitos se juntaram aos Mujahidin, os “santos guerreiros” – resolutos combatentes
das guerrilhas muçulmanas.
Seguiu-se um período de relativa calma, com a construção de
campos fortificados e o envio de novas unidades de intervenção. A presença da
16ª e da 54ª Divisões Motorizadas de Rifles elevou para 80 mil homens os
efetivos soviéticos no Afeganistão. Sem tropas suficientes para dominar todo o
país, os soviéticos deram prioridade para o controle das áreas urbanas e a
proteção de suas linhas de comunicação. Os Quartéis-Generais das divisões foram
estabelecidos ao longo das estadas que interligam Cabul, Herat e Kandahar.
Construíram-se grandes bases em torno dos principais aeroportos militares
afegãos – em Shindand, Bagram, Cabul, Herat, Kandahar, Farat e Jalalabad –
enquanto batalhões ou mesmo companhias protegiam os pontos estratégicos. Os
soviéticos concentraram seus esforços na defesa do túnel Salang, particularmente
vulnerável a incursões guerrilheiras. Um trecho da estrada entre o túnel e
Cabul era tão perigoso que se tornou conhecido como “a milha da morte”.
Um Novo Vietnam?
Nas primeiras semanas após a invasão, o comando soviético
procurou manter presença discreta, enviando o exército afegão contra os
guerrilheiros. Em fevereiro de 1980, as deserções e a desmoralização das tropas
governamentais obrigaram a adoção de uma nova política. Os afegãos de mais de
21 anos, poderiam ser mobilizados para o desempenho de serviços militares de
rotina, enquanto o exército afegão e os soviéticos preparariam conjuntamente o
ataque aos rebeldes. A chegada de
lançadores de foguetes BM-21 e de helicópteros artilhados Hind Mi-24 fez
crescer o impacto da operação projetada.
Por volta de março, unidades dos 2 exércitos investiam
contra os guerrilheiros em 3 áreas montanhosas: em torno de Herat, isto é, a
oeste na região fronteiriça do Irã; nas províncias orientais, adjacentes ao
Paquistão, e na região central de Hajarazat.
A ofensiva tinha 2 objetivos básicos: em primeiros lugar os
guerrilheiros deveriam ser desalojados do vale do Panjshir, a noroeste de Cabul,
e de outros “santuários”. Em seguida as fronteiras afegãs deveriam ser
patrulhadas e minadas, para impedir o afluxo de suprimentos.
O resultado da primeira arrancadapodem ser avaliados pelo
desenvolvimento da luta no vale do Panjshir. Até janeiros de 1984 esse vale
estreito de 110 km de comprimento e 100 mil habitantes havia resistido a 6
ataques em larga escala. Armad Shah Massoud, comandante das forças
guerrilheiras locais estabeleceu, entre uma campanha e outra, um cessar fogo
com os soviéticos.
A resistência no vale do Panjshir não foi episódio isolado.
Embora os soviéticos tivessem recorrido a assaltos de helicópteros e
bombardeios com napalm, não conseguiram impedir que os guerrilheiros utilizassem
sua tradicional tática de ataque e fuga. Com isso as baixas se avolumaram,
sobretudo entre a população civil. De 1979 ao final de 1984, os combates e
bombardeios causaram mais de 1 milhão de mortes.
O emprego de tropas soviéticas nestes combates trouxe a luz
algumas debilidades em seu treinamento. A guerra nas montanhas contra um
inimigo ardiloso exigia apoio aéreo eficaz, operações contínuas de
reconhecimento e enorme resistência física; e isso ultrapassava o nível de
desempenho que era possível esperar das diversas unidades.
Nas rudes condições do inverno afegão, os carros de combate
de VBTT sofriam constantes avarias; ainda mais importante, a necessidade de
ação independente e de decisões rápidas pressionava com intensidade a
oficialidade jovem e os sargentos, preparados para atuar “conforme o manual”.
Em resumo, pode-se dizer que a estrutura de comando e os equipamentos soviéticos, concebidos para
guerras convencionais, mostraram-se inadequados para uma campanha antiguerrilheira.
Todavia o Afeganistão jamais veio a se constituir um “Vietnam
soviético”. Isso porque – no início de 1985 – haviam somente 110 mil soldados da
URSS no país e menos de 20% participavam de operações de combate; e também porque
as divergências entre as várias dezenas de grupos guerrilheiros – sunitas,
xiitas, monarquistas, etc.- dispersavam seu potencial ofensivo contra o
invasor. Por fim os soviéticos logo conseguiram redefinir sua estratégia na
região.
Muitos analistas ocidentais se convenceram de que a URSS
estava no Afeganistão para ficar - e,
por isso, pretendia modificar lenta, mas irreversivelmente, a estrutura social
do país. Daí a prioridade dada a operações defensivas ou de represália e a “coexistência
pacífica” com a guerrilha, como ocorreu no vale do Panjshir – enquanto a
urbanização e a industrialização corroíam as bases da economia tribal e os
costumes dos Mujahidim. Eles poderiam continuar fustigando os comboios
soviéticos: seus avós fizeram exatamente o mesmo, sem resultados decisivos,
contra a Grã-Bretanha – parceira da Rússia czarista naquilo que o escritor
inglês Rudyard Kipling denominava “ o grande jogo”, isto é, o controle europeu
sobre as vastidões da Ásia Central.
A Resistência
Afegã
Em outubro de
1978, o “comunismo ateu” instalado pelo
regime do PDPA começou a sentir a rebelião da tribos montanhesas. Quando os
soviéticos cruzaram a fronteira o governo encontrava-se isolado e as áreas
rurais era dominada pelos “Mujahidins”, que já levavam sua luta à periferia de
maiores cidades. Esta mobilização decorreu da disposição do governo de impor
reforma impopulares. Propostas de alfabetização em massa e o reconhecimento do
direito das mulheres em questões como o casamento causaram forte oposição
camponesa. Tentativas de amenizar esta oposição através da execução dos
“Mullahs” (líderes religiosos ultraconservadores) e chefes de aldeias, serviram
apenas para reacender a chama da rebelião, jamais extinta nas montanhas afegãs.
Armados com mosquetes seculares e fuzis Lee Enfiled de ferrolho móvel, muitos
fabricados em “oficinas de fundo de quintal” ao longo da fronteira paquistanesa
com materiais rudimentares, os “mujahidins” foram à luta.
Entretanto, as tradicionais divisões étnicas e
tribais impediram que a revolta atingisse todo o seu potencial. Cada afegão
sente-se ligado a um grupo comunitário, o gawn, que pode ser uma tribo, um clã
ou simplesmente uma grande família. É fácil mobilizá-los para a lura: basta uma
decisão do chefe do gawn, mas é quase impossível estabelecer uma unidade entre
centenas de líderes comunitários patãs, taijiques ou uzbeques, sunitas ou xiitas,
muitas vezes com uma longa história de hostilidades recípocras. Os grupamentos
políticos contrários ao regime agravaram o problema, projetando suas próprias
divisões num movimento de resistência naturalmente fragmentado.
Por um momento
pareceu que os 85 mil soldados soviéticos conseguiriam unir – contra eles – a
totalidade de população afegã. Nas cidades, a greves e demonstrações resultavam
em confrontos sangrentos entre os manifestantes e tropas cada vez mais
desmoralizadas. As deserções reduziram os efetivos do exército afegão de 80 mil
para pouco mais de 30 mil homens. Unidades inteiras juntavam-se a guerrilha,
fornecendo-lhe moderno armamento soviético: o fuzil de assalto AKM passou a
disputar com o tradicional Lee Enfiled a preferência dos “Mujahidin”.
Paralelamente o repudio internacional à intervenção soviética ampliava as condições políticas para o envio de armas aos rebeldes. A China e o Egito, em particular, forneceram-lhes enorme quantidade de armamento soviético, inclusive fuzis Kalishnikov AK-47 (fabricados na China), canhões ZU-23 antiaéreos, minas e lançadores anticarro RPG-7. Os campos de refugiados de Peshawar, no Paquistão - onde viviam cerca de 3 milhões de afegãos – transformaram-se em mercados onde metralhadoras, fuzis e morteiros alcançavam preços exorbitantes. Sabe-se que “alguns países” criaram um fundo para compra de armas destinadas aos rebeldes; a contribuição norte-americana em 1985 foi estimada entre 250 a 280 milhões de dólares, num total de quase 500 milhões. Sabe-se também que o Paquistão desviava boa parte deste armamento, encaminhando aos “Mujahidim”, segundo algumas fontes, apenas 20%.
Um Aprendizado Difícil
O apoio à guerrilha não impediu a URSS de concretizar a primeira etapa de seu projeto estratégico, isto é, de criar um mínimo de condições para a sobrevivência do regime de Babrak Karmal, líder da facção Parcham do PDPA. Obedecendo a sua concepção tradicional, de que um envolvimento militar deve subordinar-se à objetivos políticos precisos, os soviéticos não tentaram dominar a totalidade do território nem exterminar a guerrilha, nos moldes da estratégia de “contagem de corpos” dos americanos no Vietnam.
Em vez disso, investiram um mínimo de forças para manter a posse das cidades e rodovias, limitando-se a operações de “busca e destruição” contra os guerrilheiros que ameaçavam estes pontos, enquanto procuravam reconstruir as forças armadas e administração afegãs. Todavia, mesmo perseguindo objetivos limitados, os soviéticos acabaram por enfrentar enormes dificuldades.
Na verdade, algumas características profundamente enraizadas das forças armadas soviéticas tornaram-se um instrumento inadequado para a guerra insurrecional. A boa comunicação radiofônica, o uso da inciativa pessoal e um alto padrão de liderança dos quadros jovens são ingredientes indispensáveis a qualquer estratégia antiguerrilheira. O desempenho inicial do exército soviético foi o reflexo de uma situação na qual apenas os oficiais mais graduados tinham acesso a equipamento de rádio; os mapas eram documentos de circulação limitada, emitidos somente para oficiais; não se permitia aos subalternos exercer seu julgamento e os sargentos, longe de serem figuras respeitadas que formam a espinha dorsal dos exércitos ocidentais, eram meras engrenagens administrativas.
Algumas das piores baixas em 1980 e 1981 foram devidas ao uso de carros de combate para escoltar comboios. A maioria dos carros de co,bate soviéticos possui torre baixa com domo, na qual a elevação, tanto positiva como negativa da arma principal, são bastante limitadas. Por este motivo, muitas vezes não tinham condições de combate atacantes posicionados em terreno alto
Mais tarde, o comando soviético substituiu boa parte dos carros de combate por VBTTs, mais flexíveis. No entando, os afegãos adaptaram-se à nova situação: iniciavam avalanches nas áreas montanhosas para bloquear os comboios, complementando-as pela destruição de pontes e colocação de minas. Quando as tropas soviéticas deixavam, relutantes, a proteção dos VBTTS antes de um contra-ataque efetivo, os “Mujahidim” dispersavam-se.
Uma das respostas para o problema foi o recrutamento de jovens do Cáucaso e outras áreas montanhosas da URSS, encaminhados à 105ª e à 109ª Divisões Aerotransportadas. Tais unidades tornaram-se divisões montanhesas em tudo, exceto no nome. Mesmo as divisões motorizadas de fuzileiros receberam treino em operações de montanha.
Foram adotadas, além disso, táticas semelhantes às americanas no Vietnam, viabilizadas pelas melhorias das comunicações. Os comandantes dos comboios ameaçados passaram a dirigir contra o inimigo o fogo de artilharia dos campos fortificados, desde que estivessem dentro do alcance e a receber considerável apoio aéreo. Os aparelhos sediados na base aérea de Bagram (norte), Kandahar (sul), Shindand e Herat (oeste) dispunham de sofisticados armamentos ar-solo e podiam atingir qualquer ponto do Afeganistão em minutos.
Entretanto, aeronaves rápidas de asas fixas tem dificuldade para localizar e atingir com precisão alvos específicos nas montanhas. Por este motivo os soviéticos passaram a utilizar o napalm e outros produtos químicos em suas operações, devastando com um único ataque toda a encosta de uma colina; a política de “terra arrasada” também foi aplicada às aldeias onde se abrigavam os guerrilheiros. O resultado foi o esvaziamento de inúmeros vales e a intensificação do fluxo de refugiados, que chegou a 120 mil por mês em 1981-1982.
Outra “lição do Vietam” foi o emprego em escala maciça dos helicópteros, que disputaram com os guerrilheiros o domínio do terreno montanhoso. As versões mais empregadas foram o Mil Mi-8 “Hip”, o Mi-24 “Hind” e o gigantesco Mi-26, utilizados como transportes de tropas e aeronaves artilhadas. Entre suas mais notáveis características está a solidez da estrutura, capaz de absorver pesado atrito pelo fogo antiaéreo. No entanto, as nevascas e as ondas térmicas imprevisíveis podiam ser fatais a esses aparelhos, arremessando-os contra as montanhas; também são vulneráveis aos mísseis SAM similares ao SA-7 “Grail”, de fabricação soviética. O fato dos helicópteros empregados no Afeganistão liberarem posteriormente uma série de clarões-chamarizes (flares), sugere que pelo menos alguns deles foram vítimas desse gênero de ataque.
A Guerra no Vale do Panjshir
O desempenho dos combatentes no Afeganistão pode ser avaliados ao longo dos 5 anos de confronto pelo domínio do vale do Panjshir, ao norte de Cabul. Trate-se de um vale estreito de mais de 100 km, circundado por altas montanhas e cortado por uma série de vales menores.O terreno é ideal para a luta de guerrilhas. Estima-se que seriam necessárias de 4 a 5 divisões para sua ocupação efetiva. Os “Mujahidim” o dominavam desde 1980, com cerca de 10 mil homens altamente experientes e treinados. Suas incursões a partir deste vale impunham um severo castigo aos comboios soviéticos que atravessavam o Hindu Kush pelo túnel Salang e seguinam para a capital afegã.
Os guerrilheiros de Panjshir, pertenciam a organização Jamiat-i-islami (Sociedade Islâmica). Eram comandados por Ahmed Shah Massoud, um ex-estudante de 30 anos que iniciou suas operações com apenas 30 homens e 17 fuzis antiquados. Em 1980 e 1981, Massoud resistiu a 4 ofensivas; a primeira ameaça real veio em maio de 1982, com a chamada operação Panjshir 5. A ofensiva começou em 10 de maio, com o fechamento da boca do vale e fortes bombardeios aéreos e de artilharia. Em 17 de maio um batalhão soviético foi transportado por helicópteros para uma posição elevada. Simultaneamente, uma força terrestre começou a subir o vale.
Entretanto, os guerrilheiros infligiram pesadas perdas ao batalhão aeromóvel. Em seguida, bloquearam o avanço da divisão motorizada de fuzileiros Nevel-Polotsk e Da Brigada Comando 444 do Exército Afegão.Uma coluna de carros de Combate T62 e VBTTs foi submetida a ataques incessantes e não conseguiu deslocar-se para fora da estrada, caindo vítima dos campos minados da guerrilha. Em resumo, ao atacar a vanguarda das colunas, os guerrilheiros paralisaram o avanço das tropas soviéticas e não deixaram que elas explorassem sua superioridade em equipamentos.
A operação Panjshir 6, em agosto de 1982, mostrou que os soviéticos haviam aproveitado as lições de maio. Foi dada maior atenção ao bombardeio preparatório realizados por aeronaves, incluindo helicópteros artilhados Mi-24. A ofensiva principal inciou-se em 30 de agosto. As tropas soviéticas consolidavam cada estágio de seu avanço por meio de ataques secundários aos vales laterais, por onde os “Mujahidins” se retiravam. Na verdade, os soldados não tinham pressa em abandonar a segurança dos VBTTs para persegui-los.
No final de 1982 foi estabelecida uma trégua tácita, que deixavam Panjshir sob o controle de Massoud. Seguiu-se um cessar-fogo oficial, firmado em março de 1983. O comando soviético utilizou a trégua para atacar a guerrilha em outros pontos; Massoud aproveitou para ajustar contas com os guerrilheiros do Hizb-i-Islami (Partido Islâmico), que propunha a união dos patãs do Paquistão e do Afeganistão num novo país, o Pushtunistão. Violentamente hostis aos militantes da Jamiat, em geral recrutados entre os taijiques e os uzbeques, os combatentes do Partido Islâmico haviam bloqueado o norte do Panjshir e cortado os suprimentos dos homens de Massoud enquanto os soviéticos atacavam pelo sul.
Em abril de 1984, Massoud sentiu-se forte o bastante para retomar a ofensiva. Suas tropas montaram uma série de operações ao longo da estrada Salang-Cabul, empreendidas por vários destacamentos de 500 homens. Mas os soviéticos estavam preparados: dezenas de guerrilheiros foram mortos num contra-ataque feito por helicópteros. Logo em seguida, em 21 de abril. O comando soviético lançou a 7ª ofensiva contra o vale do Panjshir, mobilizando 20 mil homens, 600 blindados e 60 helicópteros. Foram realizadas 30 incursões aérea diárias sobre as posições guerrilheiras. Além disso, pela primeira vez os soviéticos recorreram aos bombardeios de grande altitude, empregados com efeito mortífero no Vietnam.
Entretanto, não houve resistência. Massoud retirou a população civil do vale e seguiu com seus guerrilheiros para posições menos expostas, depois de explodir várias pontes vitais para o abastecimento da capital. No início de maio, os guerrilheiros admitiram a perda – temporária – de Panjshir, embora continuassem a dispor de condições para fustigar as colunas e os comboios soviéticos. Segundo vários analistas ocidentais, o êxito decorreu de uma flexibilidade tática que não era associada ao Exército Soviético desde sua entrada no país em 1979.
Quais frutos os soviéticos colheram?
Nos últimos meses de 1984, uma violenta campanha de bombas em Cabul mostrava que os “Mujahidim” pretendiam festejar ao seu modo o quinto aniversário da invasão. Eram lançados foguetes contra alvos militares e contra bairros residenciais, causando pânico à população civil. Em 1º de janeiro de 1985, vigésimo aniversário da fundação do PDPA, o esquema de segurança em Cabul era integrado por 60 mil soldados afegãos e soviéticos, e os atentados a bomba prosseguiam.
Tudo isto coloca algumas questões interligadas: Será que valeu a pena intervir no Afeganistão? Valeu a pena desgastar a imagem da URSS junto ao Terceiro Mundo, e em particular junto aos países árabes, para impor aos afegãos um regime impopular? Compensou despender 3 bilhões de dólares anuais e sofrer 20 mil baixas (de 1979 a 1985) para sustentar um governo que controlava apenas 20% do território do país?
Muitos analista responderiam afirmativamente a tais perguntas. Em sua opinião, a URSS obteve, a um custo mínimo – 5 mil baixas fatais, em 5 anos – vantagens estratégicas consideráveis.
Em termos estritamente militares, os soviéticos receberam lições valiosas no tocante a luta anti-inssurecional. A política de rotação de unidades permitiu, inclusive, que um maior número possível de tropas adquirisse experiência real de combate na “dura” escola dos guerrilheiros afegãos.
Em termos estratégicos, uma das vantagens da intervenção foi a “limpeza” do vale do Wakham, entre o Afeganistão e a China. As populações locais foram substituídas por habitantes da Ásia Central Soviética; não é difícil imaginar que os armamentos ali instalados ultrapassem de muito as necessidades da luta anti-insurrecional.
Além disso, a Força Aérea Soviética “desceu” pelo menos 300 km para o sul, aproximando-se do Golfo Pérsico. Suas aeronaves puderam a partir daí, dar cobertura às forças navais soviéticas no Índico. Segundo alguns analistas, só esta presença justificou amplamente a intervenção.
Mas havia um aspecto adicional: aparentemente os soviéticos encontraram-se no Afeganistão para ficar, não para transformá-lo em mais uma república soviética na Ásia Central, embora esta possibilidade não estivesse excluída; mas pelo menos, para torna-lo um estado cliente nos moldes da Mongólia. Os últimos soldados soviéticos abandonaram o território afegão em 15 de fevereiro de 1989, 10 anos depois de terem invadido o país para derrubar e, ao mesmo tempo, apoiar um regime que teria solicitado a ajuda soviética. A longa resistência dos afegãos não pode ser vencida, e assim a União Soviética, uma então potência mundial, se viu obrigada a retirar seus soldados sem ter ao menos uma vitória simbólica para reclamar. As tropas soviéticas, durante tantos anos tão temidas no Ocidente, foram derrotadas e expulsas por um exército de combatentes medievais, os “Mujahidins”, demonstrando que a superioridade militar das grandes potências permite a invasão com certa facilidade dos territórios do terceiro mundo, porém, a manutenção da ocupação destes territórios não é tão fácil quanto parece, e os movimentos de resistência que se formam podem ser muito difíceis de serem vencidos.
Militares e administradores afegãos estudam na URSS, mais de 7 mil crianças foram enviadas para o Uzbequistão e outras repúblicas soviéticas. A URSS absorveu a produção de gás natural, peles e couros do Afeganistão; engenheiros soviéticos construíram a primeira ferrovia afegã. Em termos políticos imediatos, o cessar-fogo estabelecido com os “Mujahidins” do vale do Panjshir indicava a intenção de “conviver” com a guerrilha, e a administração do fluxo de refugiados no final de 1984, para 2.500 pessoas por mês, sugeriu uma “convivência com o invasor”. Tudo isso pode não ser muito significativo, mas afinal foi o que os bolcheviques fizeram, no passado, em relação aos territórios muçulmanos da Ásia Central integrados ao império Czarista. Uma geração depois, a “sovietização” desses territórios era uma realidade.
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