Capitão-Tenente RHUAN TOLEDO GURGEL
Introdução
A defesa
antimíssil é uma parte importante da guerra no mar e deve cobrir preparação,
táticas e ações quando sob este tipo de ataque. A melhor defesa contra o ataque
de mísseis é a neutralização da plataforma atacante, antes do míssil ser
lançado. Uma vez que uma unidade de superfície é engajada por um míssil, pouco
resta a fazer – e este é o ponto nevrálgico.
O conteúdo deste
artigo tem por objetivo comentar este “pouco” que resta a fazer. Tal assunto
raramente é abordado em adestramentos e manuais técnicos, mas pode ser decisivo
para a sobrevivência do navio e de sua tripulação. Relacionando alguns dos
principais acontecimentos conhecidos no passado e, explorando as tecnicidades
em uma linguagem descomplicada e objetiva, serão desmistificados conceitos e
apresentados procedimentos de combate a incêndio simples, porém eficazes, que
podem ser implementados em treinamentos das tripulações dos navios.
Como Chegamos Até Aqui
Na Segunda Guerra
Mundial, alguns navios atingidos por bombas, armas antecessoras dos mísseis,
sofreram sérios danos por explosões localizadas sem ocorrência de um grande
incêndio a bordo.
Em contrapartida,
há registros históricos mostrando que, se um navio for atingido por mísseis,
além da explosão causada pela detonação da “cabeça de combate”, múltiplas
avarias e focos secundários de incêndio podem ocorrer por causa do propelente
do míssil não consumido na trajetória até o impacto.
Autores como Ian
Inskip e Harold Lee Wise relataram em seus livros o pânico vivenciado pelas
tripulações do HMS “Glamorgan”, um Contratorpedeiro britânico que foi atingido
por um míssil antinavio Exocet durante a Guerra das Falklands/Malvinas, e da USS
“Stark”, uma Fragata dos EUA da Classe Oliver Hazard Perry, que estava em
patrulha no Golfo Pérsico quando foi atingida por 2 mísseis antinavio Exocet disparados de
uma aeronave iraquiana durante a Guerra Irã-Iraque.
Os navios não
afundaram, mas vivenciaram, em momentos distintos, o desespero de se tentar
combater, ao mesmo tempo, diversas avarias, fumaça densa tomando todo o navio,
temperaturas elevadíssimas e acidentes com múltiplas vítimas.
Não tiveram a
mesma “sorte” o HMS “Sheffield”, um Contratorpedeiro do Reino Unido Tipo 42,
que foi afundado após ter sido atingido por um míssil MAS Exocet, disparado de
uma aeronave argentina durante o confronto nas Malvinas, e nem o INS “Eilat”,
um Contratorpedeiro israelense, que fora emboscado por duas embarcações
egípcias nas proximidades de Port-Said e afundou após ser atacado por quatro
mísseis Styx SS-N-2, em 1967.
O acontecimento
mais recente ocorreu em julho de 2015, quando uma Fragata egípcia foi atingida
por ATGWs supostamente disparados por militantes do ISIS, próximo à cidade de
Rafah, o que resultou em um grande incêndio no navio logo após sofrer o impacto
do míssil.
A Maior Ameaça
Durante o voo, o
propulsor do míssil libera altas temperaturas e a chama produzida pela queima
do propelente atinge a faixa dos 2.000°C. Além disso, quando se trata de
combustível sólido, as chamas têm longa duração e podem, após o impacto com o
alvo, se espalhar aleatoriamente por vários compartimentos do navio.
Isso foi
observado a bordo da USS “Stark”. O primeiro míssil não explodiu, mas perfurou
o costado de bombordo e espalhou propelente em chamas por vários
compartimentos. O segundo míssil atingiu um pouco mais à vante, porém a cabeça
de combate foi detonada. O incêndio durou quase 24 horas e propagou fumaça por
todo o navio. O propelente do míssil gerou incêndios com temperaturas
superiores a 1.900°C, inflamando quase que instantaneamente todos os materiais
de bordo.
Já o HMS
“Glamorgan” guinou, impedindo que o míssil o atingisse perpendicularmente,
porém teve a parte de ré do seu costado de bombordo tangenciada pelo míssil. A
cabeça de combate explodiu no convoo causando um rombo no piso por onde foi
derramado todo o propelente em chamas que iniciou um grande incêndio na
cozinha.
Observando o que
ocorreu nos navios citados, constata-se que, logo após o impacto do míssil, o
propelente em chamas cria focos de incêndio que podem inicialmente queimar
materiais espalhados como papel, papelão, MDM e MDF. Em seguida, o incêndio se
desenvolve e é sustentado por madeirame, massame, colchões, rouparia,
isolamento de cabos elétricos e condutores.
Quando a
temperatura do incêndio se eleva até um ponto crítico, mostrado no gráfico a
seguir, pode ocorrer a pirólise dos materiais combustíveis ali contidos. O
material consumido pelas chamas se transforma em matéria gasosa e se concentra
na parte superior do compartimento, junto com a fumaça, até que ocorra a
combustão dessa mistura. A energia irradiada em forma de calor é tão violenta
que provoca um incêndio generalizado em todo o ambiente confinado. Este
fenômeno é chamado de flashover .
O incêndio
causado por propelente de mísseis pode evoluir rapidamente da fase inicial para
o flashover e se agravar ainda mais nos casos em que compartimentos com
material inflamável, tanques ou redes de combustível são avariados, a exemplo
do que ocorreu com o HMS “Sheffield” e o INS “Eilat”.
O HMS “Sheffield”
fora atingido por apenas um míssil Exocet no costado de boreste, alguns metros
acima da linha de água, atravessando duas Praças de Máquinas e espalhando
propelente por diversos outros compartimentos. O incêndio se alastrou e o navio
se encheu de fumaça, avariando gravemente o sistema de distribuição de energia
e rompendo o anel principal da rede de incêndio, o que dificultou severamente a
atuação do Controle de Avarias (CAv) e impediu que a tripulação reagisse
adequadamente.
Já o INS “Eilat”,
mesmo abrindo fogo sobre o primeiro Styx lançado contra ele, foi atingido por
um míssil. 2 minutos depois, outro míssil atingiu o costado de bombordo,
causando grandes danos. O incêndio causou uma explosão a meia-nau que quase
partiu o navio ao meio. A propulsão foi avariada, as comunicações foram
desabilitadas, e os botes salva-vidas foram destruídos. O terceiro míssil
atingiu a popa do “Eilat”, explodindo um paiol de munições, e o quarto míssil
foi disparado quando grande parte da tripulação já estava na água.
Quando e Como Reagir
A quantidade de
propelente residual no míssil que atinge o alvo está relacionada à distância de
engajamento e, consequentemente, ao volume consumido na trajetória. Isto posto,
há quatro possibilidades ilustradas pela matriz abaixo:
No primeiro
quadrante, não haverá incêndio, apenas avarias estruturais cuja gravidade
dependerá apenas do local atingido.
No segundo
quadrante, haverá avarias estruturais graves devido às ondas de choque e aos
estilhaços. É provável que não ocorra incêndio residual, pois o calor liberado
pela explosão da cabeça de combate não é suficiente para elevar a temperatura
de materiais combustíveis acima do ponto de ignição.
No terceiro
quadrante, o propelente em chamas será difundido por uma área reduzida, ainda
assim é provável que ocorra um incêndio. A velocidade com que o incêndio se
desenvolverá, até que ocorra o flashover, dependerá da distância de
engajamento, da disposição e quantidade de material no compartimento atingido,
e da admissão de ar para combustão.
Já no quarto
quadrante, é provável que haja incêndios múltiplos. A energia da explosão de
uma cabeça de combate de sopro causará diversas cavidades ao longo da estrutura
avariada, espalhamento de material (armários, mobília, quadros e prateleiras)
e, principalmente, inúmeras passagens de ar. A dispersão do combustível não
gasto, por entre esses amplos espaços arejados criados, queimará por tempo
suficiente para inflamar materiais combustíveis.
Segundo relatos
do Capitão-Tenente Art Conklin, que foi Assistente de CAv da USS “Stark” na
época em que houve o ataque, mesmo sem ter ocorrido a detonação da cabeça de
combate, o cheiro do combustível do míssil se espalhou rapidamente por todo o
navio e, tendo em vista a distância que foi lançado (apenas 22 milhas
náuticas), Conklin estimou que havia bastante propelente espalhado pelo navio.
Nesse contexto,
convém ressaltar que os propelentes sólidos, e alguns líquidos, podem queimar
mesmo em atmosfera abafada pois contém comburente em sua composição. A intensa
queima produz grandes quantidades de subprodutos gasosos que acarreta 2
consequências diretas: reduz o oxigênio do local e cria uma sobrepressão
temporária no ambiente.
Essa
pressurização pode durar algum tempo, dependendo das características do
compartimento avariado. Além disso, a falta de oxigênio impedirá a combustão do
material na área afetada, apesar das altas temperaturas. Todavia, quando a
sobrepressão cessa, há readmissão de ar fresco que, se ocorrer antes que os
materiais combustíveis esfriem abaixo da temperatura de ignição, ocorrerá um
flashover mais rápido que o usual.
O ponto
nevrálgico é agir na única oportunidade que se abre por apenas alguns minutos.
A ação coordenada do Reparo será apresentada a seguir, dividida em 2
movimentos. Relembra-se, contudo, a necessidade de preparação individual
técnica e física dos componentes do reparo e, ainda assim, a probabilidade de
se evitar o flashover será inversamente proporcional à quantidade de propelente
residual no míssil.
1º MOVIMENTO:
inibir o flashover
Logo após o
impacto do míssil, o efeito da sobrepressão irá impedir a admissão de ar fresco
na área e, também, a combustão secundária. Esse é o tempo exato para que a
turma de incêndio possa impedir o flashover e minimizar os danos colaterais.
Esse breve período é chamado de “calmaria”, ou “lull period”.
O combate ao
incêndio deve ser feito com lançamento de espuma e por uma turma utilizando
aparelho de respiração autônoma, devido à alta toxicidade dos gases. Visto que
não é possível impedir a queima do propelente sólido, a meta é impedir a
ocorrência do flashover e, para tal, é fundamental velocidade nas ações.
Alguns manuais
citam que, pelo fato de propelentes sólidos serem higroscópicos, tais
substâncias podem ser decompostas com a presença de umidade – o que é verdade –
e, por isso, o fogo poderia ser extinto com água ou espuma. Entretanto, na
prática, é muito provável que o propelente seja completamente consumido bem
antes da turma de incêndio chegar, principalmente se for do tipo queima
irrestrita, na qual várias superfícies se inflamam conjuntamente.
A turma deve
empregar o máximo esforço para extinguir todos os pequenos focos de incêndios
residuais. Mas toda cautela deve ser levada em conta para suprimir ao máximo o
fluxo de ar fresco. Deve-se lembrar que, diferentemente de outras doutrinas,
como a francesa em que se prioriza a visualização do foco de incêndio em
detrimento do abafamento, neste tipo de incêndio, evitar o flashover tem que
ser a prioridade, caso contrário, será impossível acessar a cena de ação.
Se a turma não
conseguir agir no tempo exato, não será possível evitar o flashover. Neste caso,
deverá evacuar, isolar o compartimento, e intensificar as contenções. Somente
recorrendo-se às técnicas de combate indireto será possível recuperar o
compartimento.
2º MOVIMENTO:
contenção das avarias
Enquanto a turma
de incêndio combate os focos primários, uma turma de contenção deve ser
rapidamente distribuída em torno da área afetada. Esse arranjo visa 2 aspectos
teóricos fundamentais: garantir o isolamento e resfriar o entorno da área
afetada.
É impossível
efetuar um isolamento mecânico completo, haja vista a forma como o míssil
atinge o alvo, causando avarias estruturais e comunicação com o exterior do
navio, isto é, rombo no costado ou convés, e perfuração de anteparas.
No que tange a
resfriar os compartimentos adjacentes, os paióis de munições e paióis de
materiais inflamáveis são o maior risco para o navio durante um combate.
Temperaturas elevadíssimas são atingidas rapidamente e podem fazer componentes
estruturais como chapas, vaus, sicordas e longarinas cederem facilmente. Nesse
aspecto, a turma de contenção deve garantir que não haverá focos de incêndios
inesperados.
No caso da USS
“Stark”, 30 segundos após o primeiro impacto, o segundo míssil atingiu o navio.
A detonação da cabeça de combate ocorreu pouco depois de atravessar o casco, resultando
em boa parte do efeito de sopro ter se dissipado para área externa. Mas durante
o incêndio, o Tenente Conklin relatou que a maior preocupação era estabelecer a
contenção dos paióis de munições, pois uma explosão afundaria a Fragata.
Do ponto de vista
do CAv, os esforços envidados devem ser direcionados ao monitoramento,
alagamento ou alijamento do paiol de munições afetado. Tais atitudes
transcendem o nível decisório da Estação Central do CAv, cabendo somente ao
Comando do navio, de acordo com suas prioridades, ordenar o que deve ser feito.
Destarte, estudos da Universidade de Lund indicam que um incêndio próximo a um
paiol de munições constitui alto risco de afundamento do navio.
Direto ao Ponto:
Ações a Empreender
Segundo o
relatório do Ministério da Defesa britânico sobre o HMS “Sheffield”,
nos esforços de combate ao incêndio, faltou coordenação das equipes, as
bombas de incêndio falharam e foi constatado que os acessórios de escape
eram pequenos demais para as pessoas que usavam aparelhos de respiração
autônoma. A tripulação não pôde controlar o incêndio e, por isso, foi dada a
ordem de abandonar o navio.
Nesse contexto,
as particularidades de um incêndio causado por um engajamento de míssil
requerem mais perícia e agilidade das equipes envolvidas para realizar alguns
procedimentos. Com efeito, pequenas adequações na condução do processo podem
fazer toda a diferença no resultado, a saber:
1) Reação rápida:
o período do impacto até o flashover é crucial e pode levar de 5 a 10 minutos
para atingir condições extremas. É possível que navios em Postos de Combate
consigam debelar um incêndio assim, desde que os Reparos de CAv realizem
patrulhas constantes. Em guarnecimento de Cruzeiro de Guerra, a implementação
de uma Turma de Ataque Rápido (TAR) robusta e bem treinada, constituída por
componentes advindos de diferentes estações do navio, permite uma reação
adequada.
2) Investigação
agressiva: a maioria dos navios prevê apenas um investigador na cena de ação.
Mas, experimentos da Marinha Australiana mostraram que explosões decorrentes do
impacto do míssil conseguiam abrir escotilhas de conveses acima dos
compartimentos afetados. Também constataram que algumas escadas de acesso aos
conveses acima simplesmente derreteram em virtude das altas temperaturas.
Situações como essas requerem um militar adicional para auxiliar o investigador
nos conveses acima e assegurar o estabelecimento das contenções.
3) Supressão de
ar: o impacto do míssil causará alterações estruturais imprevisíveis no navio e
impedirá o estabelecimento total da condição ZULU de fechamento do material.
Contudo, alguns testes mostraram que a duração do incêndio depende mais das
propriedades do compartimento e da ventilação do que do combustível que está
sendo consumido, o que torna qualquer restrição de ar, de certa forma,
vantajosa.
Decerto que, nas
ações de defesa aeroespacial, o sucesso da defesa antiaérea depende da rapidez
e simplicidade desde o nível tático de coordenação das reações ZIPPO até o
nível dos Reparos de CAv, estes últimos atuando principalmente em isolar e
investigar eficazmente a área avariada, e eliminar os focos de incêndio.
O Que Esperar
Apesar de pouco se conhecer a eficácia dos sistemas de defesa contra um ataque de mísseis, é contínua a evolução da tecnologia e de recursos que exigem arquitetura aprimorada de enlace de dados, sensores otimizados e armas de autodefesa eficazes. A concepção de mísseis cada vez mais rápidos reduz a janela de detecção e o tempo de reação para empregar medidas defensivas. Pesquisas apontam que essas armas têm alcançado uma probabilidade cada vez maior de sobrepujar as defesas dos navios.
Limitar-se a praticar adestramentos simples sobre incêndios em lavanderias, escritórios e cobertas resume-se a um perigo epistemológico. Sugere-se que, nas preparações das tripulações, sejam elaborados treinamentos nos quais se faz necessário a interação entre vários Controles e Estações, abrangendo múltiplos compartimentos, que vislumbre problemas e soluções complexos e, principalmente, permutando os indivíduos entre as diversas funções, pois, após uma grande explosão, nunca se sabe qual equipe estará pronta para ser empregada.
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