FRASE

"Quem escolhe a desonra a fim de evitar o confronto, a conseguirá de pronto, e terá o confronto na sequência."

quinta-feira, 24 de março de 2022

Impacto de um Míssil Antinavio - Como Reagir *229


Capitão-Tenente RHUAN TOLEDO GURGEL

Introdução

A defesa antimíssil é uma parte importante da guerra no mar e deve cobrir preparação, táticas e ações quando sob este tipo de ataque. A melhor defesa contra o ataque de mísseis é a neutralização da plataforma atacante, antes do míssil ser lançado. Uma vez que uma unidade de superfície é engajada por um míssil, pouco resta a fazer – e este é o ponto nevrálgico.

O conteúdo deste artigo tem por objetivo comentar este “pouco” que resta a fazer. Tal assunto raramente é abordado em adestramentos e manuais técnicos, mas pode ser decisivo para a sobrevivência do navio e de sua tripulação. Relacionando alguns dos principais acontecimentos conhecidos no passado e, explorando as tecnicidades em uma linguagem descomplicada e objetiva, serão desmistificados conceitos e apresentados procedimentos de combate a incêndio simples, porém eficazes, que podem ser implementados em treinamentos das tripulações dos navios.

Como Chegamos Até Aqui

Na Segunda Guerra Mundial, alguns navios atingidos por bombas, armas antecessoras dos mísseis, sofreram sérios danos por explosões localizadas sem ocorrência de um grande incêndio a bordo.

Em contrapartida, há registros históricos mostrando que, se um navio for atingido por mísseis, além da explosão causada pela detonação da “cabeça de combate”, múltiplas avarias e focos secundários de incêndio podem ocorrer por causa do propelente do míssil não consumido na trajetória até o impacto.

Autores como Ian Inskip e Harold Lee Wise relataram em seus livros o pânico vivenciado pelas tripulações do HMS “Glamorgan”, um Contratorpedeiro britânico que foi atingido por um míssil antinavio Exocet durante a Guerra das Falklands/Malvinas, e da USS “Stark”, uma Fragata dos EUA da Classe Oliver Hazard Perry, que estava em patrulha no Golfo Pérsico quando foi atingida por 2 mísseis antinavio Exocet disparados de uma aeronave iraquiana durante a Guerra Irã-Iraque.

Os navios não afundaram, mas vivenciaram, em momentos distintos, o desespero de se tentar combater, ao mesmo tempo, diversas avarias, fumaça densa tomando todo o navio, temperaturas elevadíssimas e acidentes com múltiplas vítimas.

Não tiveram a mesma “sorte” o HMS “Sheffield”, um Contratorpedeiro do Reino Unido Tipo 42, que foi afundado após ter sido atingido por um míssil MAS Exocet, disparado de uma aeronave argentina durante o confronto nas Malvinas, e nem o INS “Eilat”, um Contratorpedeiro israelense, que fora emboscado por duas embarcações egípcias nas proximidades de Port-Said e afundou após ser atacado por quatro mísseis Styx SS-N-2, em 1967.

O acontecimento mais recente ocorreu em julho de 2015, quando uma Fragata egípcia foi atingida por ATGWs supostamente disparados por militantes do ISIS, próximo à cidade de Rafah, o que resultou em um grande incêndio no navio logo após sofrer o impacto do míssil.


A Maior Ameaça

Durante o voo, o propulsor do míssil libera altas temperaturas e a chama produzida pela queima do propelente atinge a faixa dos 2.000°C. Além disso, quando se trata de combustível sólido, as chamas têm longa duração e podem, após o impacto com o alvo, se espalhar aleatoriamente por vários compartimentos do navio.

Isso foi observado a bordo da USS “Stark”. O primeiro míssil não explodiu, mas perfurou o costado de bombordo e espalhou propelente em chamas por vários compartimentos. O segundo míssil atingiu um pouco mais à vante, porém a cabeça de combate foi detonada. O incêndio durou quase 24 horas e propagou fumaça por todo o navio. O propelente do míssil gerou incêndios com temperaturas superiores a 1.900°C, inflamando quase que instantaneamente todos os materiais de bordo.

Já o HMS “Glamorgan” guinou, impedindo que o míssil o atingisse perpendicularmente, porém teve a parte de ré do seu costado de bombordo tangenciada pelo míssil. A cabeça de combate explodiu no convoo causando um rombo no piso por onde foi derramado todo o propelente em chamas que iniciou um grande incêndio na cozinha.

Observando o que ocorreu nos navios citados, constata-se que, logo após o impacto do míssil, o propelente em chamas cria focos de incêndio que podem inicialmente queimar materiais espalhados como papel, papelão, MDM e MDF. Em seguida, o incêndio se desenvolve e é sustentado por madeirame, massame, colchões, rouparia, isolamento de cabos elétricos e condutores.

Quando a temperatura do incêndio se eleva até um ponto crítico, mostrado no gráfico a seguir, pode ocorrer a pirólise dos materiais combustíveis ali contidos. O material consumido pelas chamas se transforma em matéria gasosa e se concentra na parte superior do compartimento, junto com a fumaça, até que ocorra a combustão dessa mistura. A energia irradiada em forma de calor é tão violenta que provoca um incêndio generalizado em todo o ambiente confinado. Este fenômeno é chamado de flashover .

O incêndio causado por propelente de mísseis pode evoluir rapidamente da fase inicial para o flashover e se agravar ainda mais nos casos em que compartimentos com material inflamável, tanques ou redes de combustível são avariados, a exemplo do que ocorreu com o HMS “Sheffield” e o INS “Eilat”.


O HMS “Sheffield” fora atingido por apenas um míssil Exocet no costado de boreste, alguns metros acima da linha de água, atravessando duas Praças de Máquinas e espalhando propelente por diversos outros compartimentos. O incêndio se alastrou e o navio se encheu de fumaça, avariando gravemente o sistema de distribuição de energia e rompendo o anel principal da rede de incêndio, o que dificultou severamente a atuação do Controle de Avarias (CAv) e impediu que a tripulação reagisse adequadamente.

Já o INS “Eilat”, mesmo abrindo fogo sobre o primeiro Styx lançado contra ele, foi atingido por um míssil. 2 minutos depois, outro míssil atingiu o costado de bombordo, causando grandes danos. O incêndio causou uma explosão a meia-nau que quase partiu o navio ao meio. A propulsão foi avariada, as comunicações foram desabilitadas, e os botes salva-vidas foram destruídos. O terceiro míssil atingiu a popa do “Eilat”, explodindo um paiol de munições, e o quarto míssil foi disparado quando grande parte da tripulação já estava na água.

Quando e Como Reagir

A quantidade de propelente residual no míssil que atinge o alvo está relacionada à distância de engajamento e, consequentemente, ao volume consumido na trajetória. Isto posto, há quatro possibilidades ilustradas pela matriz abaixo:


No primeiro quadrante, não haverá incêndio, apenas avarias estruturais cuja gravidade dependerá apenas do local atingido.

No segundo quadrante, haverá avarias estruturais graves devido às ondas de choque e aos estilhaços. É provável que não ocorra incêndio residual, pois o calor liberado pela explosão da cabeça de combate não é suficiente para elevar a temperatura de materiais combustíveis acima do ponto de ignição.

No terceiro quadrante, o propelente em chamas será difundido por uma área reduzida, ainda assim é provável que ocorra um incêndio. A velocidade com que o incêndio se desenvolverá, até que ocorra o flashover, dependerá da distância de engajamento, da disposição e quantidade de material no compartimento atingido, e da admissão de ar para combustão.

Já no quarto quadrante, é provável que haja incêndios múltiplos. A energia da explosão de uma cabeça de combate de sopro causará diversas cavidades ao longo da estrutura avariada, espalhamento de material (armários, mobília, quadros e prateleiras) e, principalmente, inúmeras passagens de ar. A dispersão do combustível não gasto, por entre esses amplos espaços arejados criados, queimará por tempo suficiente para inflamar materiais combustíveis.

Segundo relatos do Capitão-Tenente Art Conklin, que foi Assistente de CAv da USS “Stark” na época em que houve o ataque, mesmo sem ter ocorrido a detonação da cabeça de combate, o cheiro do combustível do míssil se espalhou rapidamente por todo o navio e, tendo em vista a distância que foi lançado (apenas 22 milhas náuticas), Conklin estimou que havia bastante propelente espalhado pelo navio.

Nesse contexto, convém ressaltar que os propelentes sólidos, e alguns líquidos, podem queimar mesmo em atmosfera abafada pois contém comburente em sua composição. A intensa queima produz grandes quantidades de subprodutos gasosos que acarreta 2 consequências diretas: reduz o oxigênio do local e cria uma sobrepressão temporária no ambiente.

Essa pressurização pode durar algum tempo, dependendo das características do compartimento avariado. Além disso, a falta de oxigênio impedirá a combustão do material na área afetada, apesar das altas temperaturas. Todavia, quando a sobrepressão cessa, há readmissão de ar fresco que, se ocorrer antes que os materiais combustíveis esfriem abaixo da temperatura de ignição, ocorrerá um flashover mais rápido que o usual.

O ponto nevrálgico é agir na única oportunidade que se abre por apenas alguns minutos. A ação coordenada do Reparo será apresentada a seguir, dividida em 2 movimentos. Relembra-se, contudo, a necessidade de preparação individual técnica e física dos componentes do reparo e, ainda assim, a probabilidade de se evitar o flashover será inversamente proporcional à quantidade de propelente residual no míssil.

1º MOVIMENTO: inibir o flashover

Logo após o impacto do míssil, o efeito da sobrepressão irá impedir a admissão de ar fresco na área e, também, a combustão secundária. Esse é o tempo exato para que a turma de incêndio possa impedir o flashover e minimizar os danos colaterais. Esse breve período é chamado de “calmaria”, ou “lull period”.

O combate ao incêndio deve ser feito com lançamento de espuma e por uma turma utilizando aparelho de respiração autônoma, devido à alta toxicidade dos gases. Visto que não é possível impedir a queima do propelente sólido, a meta é impedir a ocorrência do flashover e, para tal, é fundamental velocidade nas ações.

Alguns manuais citam que, pelo fato de propelentes sólidos serem higroscópicos, tais substâncias podem ser decompostas com a presença de umidade – o que é verdade – e, por isso, o fogo poderia ser extinto com água ou espuma. Entretanto, na prática, é muito provável que o propelente seja completamente consumido bem antes da turma de incêndio chegar, principalmente se for do tipo queima irrestrita, na qual várias superfícies se inflamam conjuntamente.

A turma deve empregar o máximo esforço para extinguir todos os pequenos focos de incêndios residuais. Mas toda cautela deve ser levada em conta para suprimir ao máximo o fluxo de ar fresco. Deve-se lembrar que, diferentemente de outras doutrinas, como a francesa em que se prioriza a visualização do foco de incêndio em detrimento do abafamento, neste tipo de incêndio, evitar o flashover tem que ser a prioridade, caso contrário, será impossível acessar a cena de ação.

Se a turma não conseguir agir no tempo exato, não será possível evitar o flashover. Neste caso, deverá evacuar, isolar o compartimento, e intensificar as contenções. Somente recorrendo-se às técnicas de combate indireto será possível recuperar o compartimento.

2º MOVIMENTO: contenção das avarias

Enquanto a turma de incêndio combate os focos primários, uma turma de contenção deve ser rapidamente distribuída em torno da área afetada. Esse arranjo visa 2 aspectos teóricos fundamentais: garantir o isolamento e resfriar o entorno da área afetada.

É impossível efetuar um isolamento mecânico completo, haja vista a forma como o míssil atinge o alvo, causando avarias estruturais e comunicação com o exterior do navio, isto é, rombo no costado ou convés, e perfuração de anteparas.

No que tange a resfriar os compartimentos adjacentes, os paióis de munições e paióis de materiais inflamáveis são o maior risco para o navio durante um combate. Temperaturas elevadíssimas são atingidas rapidamente e podem fazer componentes estruturais como chapas, vaus, sicordas e longarinas cederem facilmente. Nesse aspecto, a turma de contenção deve garantir que não haverá focos de incêndios inesperados.

No caso da USS “Stark”, 30 segundos após o primeiro impacto, o segundo míssil atingiu o navio. A detonação da cabeça de combate ocorreu pouco depois de atravessar o casco, resultando em boa parte do efeito de sopro ter se dissipado para área externa. Mas durante o incêndio, o Tenente Conklin relatou que a maior preocupação era estabelecer a contenção dos paióis de munições, pois uma explosão afundaria a Fragata.

Do ponto de vista do CAv, os esforços envidados devem ser direcionados ao monitoramento, alagamento ou alijamento do paiol de munições afetado. Tais atitudes transcendem o nível decisório da Estação Central do CAv, cabendo somente ao Comando do navio, de acordo com suas prioridades, ordenar o que deve ser feito. Destarte, estudos da Universidade de Lund indicam que um incêndio próximo a um paiol de munições constitui alto risco de afundamento do navio.

Direto ao Ponto: Ações a Empreender

Segundo o relatório do Ministério da Defesa britânico sobre o HMS “Sheffield”, nos esforços de combate ao incêndio, faltou coordenação das equipes, as bombas de incêndio falharam e foi constatado que os acessórios de escape eram pequenos demais para as pessoas que usavam aparelhos de respiração autônoma. A tripulação não pôde controlar o incêndio e, por isso, foi dada a ordem de abandonar o navio.

Nesse contexto, as particularidades de um incêndio causado por um engajamento de míssil requerem mais perícia e agilidade das equipes envolvidas para realizar alguns procedimentos. Com efeito, pequenas adequações na condução do processo podem fazer toda a diferença no resultado, a saber:

1) Reação rápida: o período do impacto até o flashover é crucial e pode levar de 5 a 10 minutos para atingir condições extremas. É possível que navios em Postos de Combate consigam debelar um incêndio assim, desde que os Reparos de CAv realizem patrulhas constantes. Em guarnecimento de Cruzeiro de Guerra, a implementação de uma Turma de Ataque Rápido (TAR) robusta e bem treinada, constituída por componentes advindos de diferentes estações do navio, permite uma reação adequada.

2) Investigação agressiva: a maioria dos navios prevê apenas um investigador na cena de ação. Mas, experimentos da Marinha Australiana mostraram que explosões decorrentes do impacto do míssil conseguiam abrir escotilhas de conveses acima dos compartimentos afetados. Também constataram que algumas escadas de acesso aos conveses acima simplesmente derreteram em virtude das altas temperaturas. Situações como essas requerem um militar adicional para auxiliar o investigador nos conveses acima e assegurar o estabelecimento das contenções.

3) Supressão de ar: o impacto do míssil causará alterações estruturais imprevisíveis no navio e impedirá o estabelecimento total da condição ZULU de fechamento do material. Contudo, alguns testes mostraram que a duração do incêndio depende mais das propriedades do compartimento e da ventilação do que do combustível que está sendo consumido, o que torna qualquer restrição de ar, de certa forma, vantajosa.

Decerto que, nas ações de defesa aeroespacial, o sucesso da defesa antiaérea depende da rapidez e simplicidade desde o nível tático de coordenação das reações ZIPPO até o nível dos Reparos de CAv, estes últimos atuando principalmente em isolar e investigar eficazmente a área avariada, e eliminar os focos de incêndio.

O Que Esperar

Apesar de pouco se conhecer a eficácia dos sistemas de defesa contra um ataque de mísseis, é contínua a evolução da tecnologia e de recursos que exigem arquitetura aprimorada de enlace de dados, sensores otimizados e armas de autodefesa eficazes. A concepção de mísseis cada vez mais rápidos reduz a janela de detecção e o tempo de reação para empregar medidas defensivas. Pesquisas apontam que essas armas têm alcançado uma probabilidade cada vez maior de sobrepujar as defesas dos navios.

Limitar-se a praticar adestramentos simples sobre incêndios em lavanderias, escritórios e cobertas resume-se a um perigo epistemológico. Sugere-se que, nas preparações das tripulações, sejam elaborados treinamentos nos quais se faz necessário a interação entre vários Controles e Estações, abrangendo múltiplos compartimentos, que vislumbre problemas e soluções complexos e, principalmente, permutando os indivíduos entre as diversas funções, pois, após uma grande explosão, nunca se sabe qual equipe estará pronta para ser empregada.



domingo, 13 de março de 2022

Invasão Soviética do Afeganistão *228


GNP

Invasão Soviética do Afeganistão

Situado no coração da Ásia, o Afeganistão é um país de 647.497 km², subdesenvolvido a níveis quase medievais, sem ferrovias nem rios navegáveis. Suas montanhas e vales assistiram ao alvorecer de inúmeras civilizações, mas o país jamais apresentou uma efetiva unidade nacional: é antes um mosaico de tribos e etnias, com tradição de rivalidades entre si. As tribos do grupo patã (pushtu) correspondiam a mais de 60% dos 16 milhões de afegãos à época da invasão soviética. Seguiam-se os taijiques com 30,7%, os uzbeques e os hazara, descendentes dos mongóis de Gengis Khan, que invadiu o país no século XIII e arrasou uma das mais ricas civilizações do mundo islâmico. Haviam 2 línguas oficiais: O pushtu, da etnia majoritária, e o dari, dialeto persa do grupo taijique.

A diversidade étnica e linguística tem por contrapartida uma profunda unidade religiosa. A quase totalidade dos afegãos é muçulmana: 90% seguem a seita sunita e 9% a seita xiita. Outro aspecto unificador é um ardente sentimento de resistência aos invasores de suas montanhas. Os afegãos aniquilaram 2 expedições britânicas, em 1841 e 1879, antes de seu país se tornar um protetorado submetido ao vice-rei da Índia. Desde o século XIX se chocam no Afeganistão o expansionismo britânico e o russo na Ásia Central; os soviéticos limitaram-se a revestir de matizes ideológicos “progressistas” o projeto do czares.


Em 1920, o país aproveitou-se do desequilíbrio do poder na Ásia após a Revolução Bolchevique na Rússia para recuperar sua independência plena. Um tratado de amizade russo-afegão foi assinado em 1921; nas décadas seguintes o governo de Cabul, a capital, procurou manipular os interesses divergentes de Londres e Moscou, de modo a preservar sua autonomia. Na década de 50, auge da Guerra Fria, essa política de equilíbrio levou o Afeganistão a rejeitar a proposta americana de participação no Pacto de Bagdá, nitidamente anticomunista. Washington ameaçou cortar as remessas de armamentos se o país não se alinhasse com o Ocidente; diante das pressões o Afeganistão recorreu ao bloco socialista.

Em 1956, o primeiro ministro Mohammad Daoud Khan – primo e cunhado de Mohammad Zahir Shan, rei do Afeganistão desde 1933 – assinou com o Kremlin um contrato de fornecimento de armas no valor de US$ 25 milhões. Seguiram-se um empréstimo de US$ 100 milhões, destinados ao primeiro plano quinquenal afegão, e, em 1961, convênios de treinamento militar com a URSS e a Tchecoslováquia.

Em 1963, incidentes fronteiriços com o Paquistão resultaram na demissão de Daoud. No ano seguinte, uma constituição liberal assegurou, pela primeira vez na história afegã, a liberdade de imprensa  e a realização de eleições parlamentares.

Surgiu entre outros, o Partido Democrata do Povo do Afeganistão (PDPA), de orientação marxista, fundado em 1965. Seu principal líder era Nur Mohammad Taraki, um intelectual autodidata, nascido em família nômade. 2 anos depois, o PDPA já se encontrava dividido entre a facção de Taraki e e a do líder estudantil Babrak Karmal.

Os seguidores de Taraki tentaram atribuir caráter “classista” ao conflito, pois Karmal era filho de um general ilustre e tinha laços de parentesco com a família real. Mas também havia fatores étnicos na divisão. A facção de Taraki, que editava o periódico Khalq (O Povo), era  majoritariamente patã, enquanto os partidários de Karmal, reunidos em torno de outra publicação partidária, Parcham (Bandeira), pertenciam em geral a etnia taijique. Em termos políticos, os parcham rejeitavam o radicalismo de Taraki, julgando-o perigoso num país com 92% de analfabetos e onde 60% dos camponeses cultivavam suas próprias terras.

Em 17 de julho de 1973, um golpe militar apoiado pela facção parcham, reconduziu o General Daoud ao poder. Este proclamou a República e procurou impulsionar a reforma agrária e outras mudanças na estrutura social afegã. Mas essa fase durou pouco: Daoud afastou os parcham dos principais cargos por eles ocupados, substituindo-os por elementos conservadores. Em julho de 1975 foi suprimida a liberdade de imprensa; em 1977, os parcham e os khalq reunificaram o dividido PDPA.

Era, porém, uma unidade precária. No inverno de 1977, o ex-professor Hafizullah Amin, foi encarregado de estabelecer uma organização militar clandestina; os oficiais por ele recrutados deviam lealdade à facção khalq, e só depois ao partido. No dia 17 de abril de 1978, o assassinato do teórico e escritor parcham Mir Akbar Khyber – um crime jamais esclarecido, atribuído à CIA – provocou protestos diante da embaixada americana em Cabul. Na noite de 26 de abril, unidades fiéis a Daoud começaram a prender os líderes do PDPA.

Era tarde, ante de ser preso, Hafizullah Amin fez contato com os quadros militares do PDPA, ordenando-lhe o início das operações. O Golpe foi desencadeado às 0600 do dia 27 de abril, sob direção do coronel Abdul Qader, comandante-chefe adjunto da Força Aérea Afegã. Oficiais Khalq lideraram um intenso ataque de blindados ao palácio presidencial, no qual morreram o presidente Daoud e pelo menos 17 membros de sua família.

Libertados, os líderes do PDA, passaram a controlar o Conselho Revolucionário, órgão dirigente da República Democrática do Afeganistão. Proclamada no dia 30 de abril de 1978. Mas logo surgiram rivalidades. Embora Karmal e Amin fossem primeiro-ministros adjuntos no governo formado por Taraki, era evidente a supremacia da Facção Khalq, majoritária nas forças armadas. Em 5 de julho, Karmal e outros líderes foram afastados, nomeados para embaixadas na Europa oriental. Depois, foram declarados “traidores” – e protegidos pels URSS, cada vez mais preocupada com o radicalismo Khalq.


Uma Facção em Crise

De fato, após o afastamento de Karmal, o governo revolucionário afegão impulsionou reformas apressadas e impopulares, impostas a ponta de baioneta. Uma destas foi a abolição da usura: como o governo se “esqueceu” de criar uma fonte alternativa de crédito, os camponeses não puderam comprar sementes e ferramentas. Uma tentativa de estabelecer idade mínima para o casamento e fixar numa soma simbólica o tradicional dote da noiva foi repudiada. O mais grave problema da estrutura rural permaneceu:  O controle dos chefes tribais sobre as fontes de água e os canais de irrigação, fundamento da sua hegemonia nas aldeias.

A oposição armada manifestou-se nas áreas rurais na segunda metade de 1978. Combates isolados ocorreram no final do ano, mas foi em janeiro de 1979 que a revolta teve um momento importante, quando derrotou 1000 soldados  enviaods por Cabul para refrear a ação do guerrilheiros da tribo Safi, em Shuncri, no nordeste. Esses rebeldes faziam parte da organização  dos muçulmanos xiitas anticomunistas (Jamiat-i-Islami) e desejavam para o Afeganistão um regime nos moldes iranianos.

Em março de 1979, uma passeata de camponeses transformou-se em sublevação generalizada na cidade de Herat. A guarnição local aliou-se aos insurretos, massacrando centenas de oficiais e cerca de 50 assessores soviéticos.

O esmagamento da rebelião de Herat exigiu o emprego de blindados, helicópteros artilhados e bombardeiros Ilyushin 28, com saldo de mais de 5 mil vítimas. 3 meses depois, no dia 23 de junho, a revolta contra o “ateísmo comunista” explodia no bairro xiita de Cabul, sendo reprimida com violência. Em 5 de agosto, unidades blindadas e de comandos tentaram derrubar o governo.

Que a situação deteriorava, Taraki perdia influência para Hafizullah Amin. Em 16 de setembro,  um tiroteio no palácio presidencial antecedeu o desaparecimento de Taraki. O governo “por motivos de saúde”; sua morte foi anunciada em 6 de outubro de 1979. Corriam rumores de que fora preso e estrangulado por ordem de Amin.

O novo governo procurou atribuir a Taraki  a responsabilidade por alguns “excessos” mais isso não diminuiu sua impopularidade  nem sua total dependência  em relação a ajuda econômica   e militar soviética. Moscou enviada equipamentos, conselheiros militares e mesmo unidades de combate ao Afeganistão, em apoio a Amin. Paralelamente, dava os retoques finais num projeto em andamento desde março de 1979: a intervenção direta.

Alguns analistas ocidentais acreditam que a missão militar soviética que percorreu o Afeganistão logo após o levante de Herat traçou os primeiros esboços de um plano operacional de ocupação. Nos meses seguintes, a crescente instabilidade no Golfo Pérsico, após a derrubada da monarquia iraniana, e a perspectiva de que o fundamentalismo xiita “contagiasse” as repúblicas soviéticas da Ásia Central tornaram os soviéticos cada vez mais suscetíveis quanto à situação crítica em sua fronteira meridional. O brutal assassinato de Taraki convenceu-os de que era impossível esperar mais.

A decisão de intervir deve ter sido tomada em 26 de novembro de 1979, numa reunião do Politiburo soviético. 3 dias depois, unidades da 105ª Divisão Aerotransportada de Guardas começaram a chegar à República Soviética do Uzbequistão; em 6 de dezembro, já havia 3 batalhões dessa tropa de elite perto da fronteira afegã.



Afeganistão Invadido

 Em 29 de novembro de 1979, o general soviético Viktor Paputin voou para Cabul, presumivelmente com a espinhosa tarefa de convencer a primeiro ministro Hafizullah Amin a entregar o governo ao “traidor” Babrak Karmal, exilado de 1978. A autorização para a entrada de tropas da URSS no Afeganistão, nos termos do tratado de amizade firmado em dezembro de 1978, também deve ter constado das discussões de Paputin e Amin. Como era de esperar, Amin resistiu ás pressões – e a recusa selou seu destino.

Nas semanas seguintes, mais de 100 mil homens de unidades motorizadas soviéticas, apoiados por blindados e artilharia, ocuparam posições junto a fronteira afegã. Em 20 de dezembro, os blindados da 105ª Divisão Aerotransportada de Guardas, sediados na localidade uzbeque de Ferghana, deslocaram-se para o sul, dominando o estratégico túnel Salang, de 5 km de comprimento. Por ele costumavam seguir os suprimentos soviéticos para o regime de Amin. Por ele avançaria boa parte das tropas encarregadas de derrubá-lo.

Ás 2300 de 24 de dezembro unidades da divisão citada começaram a aterrizar no aeroporto de Cabul, estabelecendo uma cabeça de ponte. Outras unidades seguiram para a base aérea de Bagram, na periferia da capital e para a demais bases do país. Durante 2 dias, uma ponte aérea realizada por aeronaves militares e civis, estes da Aeroflot, elevou para quase 5 mil soldados soviéticos presentes na capital.

Paralelamente os 1500​ conselheiros militares soviéticos presentes na capital afegã tentaram convencer seus comandados de que tudo não passavam de um exercício em larga escala. Alguns destacamentos sob controle soviético receberam munição de festim “para as manobras”. Os blindados de outras unidades foram imobilizados para reparos ou tiveram suas baterias removidas. Tais precauções mostram que os soviéticos estavam cientes do sentimento antirusso no Afeganistão, e indicam o elevado grau de controle das forças armadas do país.

Às 1900 do dia 27, as tropas da URSS na capital prosseguiam em sua ofensiva. Foram capturados vários pontos-chave, entre os quais o ministério do interior, sede da temida polícia secreta de Amin, e a central telefônica. Uma colunas de blindados VBTT deslocou-se de Bagram com o apoio de peças de artilharia ASU-85 e cercou o palácio Darulaman, protegido por um regimento de carros de combate. Em seu interior estava o primeiro ministro.

Os acontecimentos subsequentes permanecem controvertidos. Aparentemente o General Paputin discutiu com Amin e foi baleado por um de seus guarda-costas. Na defesa do palácio, tomado de assalto por paraquedistas o primeiro ministro morreu e com ele desapareceram as justificativas de Moscou, que alegava agir em apoio ao governo deste país.



Por volta das 2300 do dia 28 de dezembro de 1979, o centro de Cabul estava sob controle soviético. Anunciou-se que Babrak Karmal fora “eleito” secretário geral do PDPA, enquanto Amin era oficialmente “desmascarado” como agente da CIA. O novo governo solicitou o imediato amparo soviético nos campos moral, político, militar e econômico, declarou respeitar a religião muçulmana e comprometeu-se a levar a julgamento os “carrascos” da polícia secreta de Amin, acusados de assassinato de 25 mil afegãos.

Nos dias seguintes outras 4 divisões soviéticas chegaram ao Afeganistão. A 66ª e a 357ª Divisões Motorizadas de Rifles que seguiram para as capitais provinciais Herat e Kandahar, a noroeste e ao sul do país. A 201ª e a 360ª divisões cruzaram uma ponte flutuante no rio Amu Darya, de 1 km de largura, e procuraram estabelecer ligação com as unidades da 105ª Divisão, que rumava para a túnel Salang a partir de Bagram. As 2 colunas dispunham de VBTTs, carros de combate T54 e T62 e artilharia. A proteção aérea ao avanço era assegurada por várias esquadrilhas de caça-bombardeiros MiG-23.

No fundamental a oposição as forças soviéticas foi insignificante. Surgiram relatos de que a 8ª Divisão afegã desenvolveu forte resistência aos invasores, mas são exageradas as estimativas de ocorrência de 2 mil baixas durante a intervenção. Nos meses seguinte porém, cerca da metade do 40 mil integrantes do exército afegão desertou. A maioria voltou para suas aldeias, muitos se juntaram aos Mujahidin, os “santos guerreiros” – resolutos combatentes das guerrilhas muçulmanas.

Seguiu-se um período de relativa calma, com a construção de campos fortificados e o envio de novas unidades de intervenção. A presença da 16ª e da 54ª Divisões Motorizadas de Rifles elevou para 80 mil homens os efetivos soviéticos no Afeganistão. Sem tropas suficientes para dominar todo o país, os soviéticos deram prioridade para o controle das áreas urbanas e a proteção de suas linhas de comunicação. Os Quartéis-Generais das divisões foram estabelecidos ao longo das estadas que interligam Cabul, Herat e Kandahar. Construíram-se grandes bases em torno dos principais aeroportos militares afegãos – em Shindand, Bagram, Cabul, Herat, Kandahar, Farat e Jalalabad – enquanto batalhões ou mesmo companhias protegiam os pontos estratégicos. Os soviéticos concentraram seus esforços na defesa do túnel Salang, particularmente vulnerável a incursões guerrilheiras. Um trecho da estrada entre o túnel e Cabul era tão perigoso que se tornou conhecido como “a milha da morte”.



Um Novo Vietnam?

Nas primeiras semanas após a invasão, o comando soviético procurou manter presença discreta, enviando o exército afegão contra os guerrilheiros. Em fevereiro de 1980, as deserções e a desmoralização das tropas governamentais obrigaram a adoção de uma nova política. Os afegãos de mais de 21 anos, poderiam ser mobilizados para o desempenho de serviços militares de rotina, enquanto o exército afegão e os soviéticos preparariam conjuntamente o ataque aos rebeldes.  A chegada de lançadores de foguetes BM-21 e de helicópteros artilhados Hind Mi-24 fez crescer o impacto da operação projetada.

Por volta de março, unidades dos 2 exércitos investiam contra os guerrilheiros em 3 áreas montanhosas: em torno de Herat, isto é, a oeste na região fronteiriça do Irã; nas províncias orientais, adjacentes ao Paquistão, e na região central de Hajarazat.

A ofensiva tinha 2 objetivos básicos: em primeiros lugar os guerrilheiros deveriam ser desalojados do vale do Panjshir, a noroeste de Cabul, e de outros “santuários”. Em seguida as fronteiras afegãs deveriam ser patrulhadas e minadas, para impedir o afluxo de suprimentos.

O resultado da primeira arrancadapodem ser avaliados pelo desenvolvimento da luta no vale do Panjshir. Até janeiros de 1984 esse vale estreito de 110 km de comprimento e 100 mil habitantes havia resistido a 6 ataques em larga escala. Armad Shah Massoud, comandante das forças guerrilheiras locais estabeleceu, entre uma campanha e outra, um cessar fogo com os soviéticos.

A resistência no vale do Panjshir não foi episódio isolado. Embora os soviéticos tivessem recorrido a assaltos de helicópteros e bombardeios com napalm, não conseguiram impedir que os guerrilheiros utilizassem sua tradicional tática de ataque e fuga. Com isso as baixas se avolumaram, sobretudo entre a população civil. De 1979 ao final de 1984, os combates e bombardeios causaram mais de 1 milhão de mortes.

O emprego de tropas soviéticas nestes combates trouxe a luz algumas debilidades em seu treinamento. A guerra nas montanhas contra um inimigo ardiloso exigia apoio aéreo eficaz, operações contínuas de reconhecimento e enorme resistência física; e isso ultrapassava o nível de desempenho que era possível esperar das diversas unidades.

Nas rudes condições do inverno afegão, os carros de combate de VBTT sofriam constantes avarias; ainda mais importante, a necessidade de ação independente e de decisões rápidas pressionava com intensidade a oficialidade jovem e os sargentos, preparados para atuar “conforme o manual”. Em resumo, pode-se dizer que a estrutura de comando  e os equipamentos soviéticos, concebidos para guerras convencionais, mostraram-se inadequados para uma campanha antiguerrilheira.

Todavia o Afeganistão jamais veio a se constituir um “Vietnam soviético”. Isso porque – no início de 1985 – haviam somente 110 mil soldados da URSS no país e menos de 20% participavam de operações de combate; e também porque as divergências entre as várias dezenas de grupos guerrilheiros – sunitas, xiitas, monarquistas, etc.- dispersavam seu potencial ofensivo contra o invasor. Por fim os soviéticos logo conseguiram redefinir sua estratégia na região.

Muitos analistas ocidentais se convenceram de que a URSS estava no Afeganistão para ficar -  e, por isso, pretendia modificar lenta, mas irreversivelmente, a estrutura social do país. Daí a prioridade dada a operações defensivas ou de represália e a “coexistência pacífica” com a guerrilha, como ocorreu no vale do Panjshir – enquanto a urbanização e a industrialização corroíam as bases da economia tribal e os costumes dos Mujahidim. Eles poderiam continuar fustigando os comboios soviéticos: seus avós fizeram exatamente o mesmo, sem resultados decisivos, contra a Grã-Bretanha – parceira da Rússia czarista naquilo que o escritor inglês Rudyard Kipling denominava “ o grande jogo”, isto é, o controle europeu sobre as vastidões da Ásia Central.


A Resistência Afegã

Em outubro de 1978,  o “comunismo ateu” instalado pelo regime do PDPA começou a sentir a rebelião da tribos montanhesas. Quando os soviéticos cruzaram a fronteira o governo encontrava-se isolado e as áreas rurais era dominada pelos “Mujahidins”, que já levavam sua luta à periferia de maiores cidades. Esta mobilização decorreu da disposição do governo de impor reforma impopulares. Propostas de alfabetização em massa e o reconhecimento do direito das mulheres em questões como o casamento causaram forte oposição camponesa. Tentativas de amenizar esta oposição através da execução dos “Mullahs” (líderes religiosos ultraconservadores) e chefes de aldeias, serviram apenas para reacender a chama da rebelião, jamais extinta nas montanhas afegãs. Armados com mosquetes seculares e fuzis Lee Enfiled de ferrolho móvel, muitos fabricados em “oficinas de fundo de quintal” ao longo da fronteira paquistanesa com materiais rudimentares, os “mujahidins” foram à luta.

 Entretanto, as tradicionais divisões étnicas e tribais impediram que a revolta atingisse todo o seu potencial. Cada afegão sente-se ligado a um grupo comunitário, o gawn, que pode ser uma tribo, um clã ou simplesmente uma grande família. É fácil mobilizá-los para a lura: basta uma decisão do chefe do gawn, mas é quase impossível estabelecer uma unidade entre centenas de líderes comunitários patãs, taijiques ou uzbeques, sunitas ou xiitas, muitas vezes com uma longa história de hostilidades recípocras. Os grupamentos políticos contrários ao regime agravaram o problema, projetando suas próprias divisões num movimento de resistência naturalmente fragmentado.

Por um momento pareceu que os 85 mil soldados soviéticos conseguiriam unir – contra eles – a totalidade de população afegã. Nas cidades, a greves e demonstrações resultavam em confrontos sangrentos entre os manifestantes e tropas cada vez mais desmoralizadas. As deserções reduziram os efetivos do exército afegão de 80 mil para pouco mais de 30 mil homens. Unidades inteiras juntavam-se a guerrilha, fornecendo-lhe moderno armamento soviético: o fuzil de assalto AKM passou a disputar com o tradicional Lee Enfiled a preferência dos “Mujahidin”.

Paralelamente o repudio internacional à intervenção soviética ampliava as condições políticas para o envio de armas aos rebeldes. A China e o Egito, em particular, forneceram-lhes enorme quantidade de armamento soviético, inclusive fuzis Kalishnikov  AK-47 (fabricados na China), canhões ZU-23 antiaéreos, minas e lançadores anticarro RPG-7. Os campos de refugiados de Peshawar, no Paquistão - onde viviam cerca de 3 milhões de afegãos – transformaram-se em mercados onde metralhadoras, fuzis e morteiros alcançavam preços exorbitantes. Sabe-se que “alguns países” criaram um fundo para compra de armas destinadas aos rebeldes; a contribuição norte-americana em 1985 foi estimada entre 250 a 280 milhões de dólares, num total de quase 500 milhões. Sabe-se também que o Paquistão desviava boa parte deste armamento, encaminhando aos “Mujahidim”, segundo algumas fontes, apenas 20%.



Um Aprendizado Difícil

O apoio à guerrilha não impediu a URSS de concretizar a primeira etapa de seu projeto estratégico, isto é, de criar um mínimo de condições para a sobrevivência do regime de Babrak Karmal, líder da facção Parcham do PDPA. Obedecendo a sua concepção tradicional, de que um envolvimento militar deve subordinar-se à objetivos políticos precisos, os soviéticos não tentaram dominar a totalidade do território nem exterminar a guerrilha, nos moldes da estratégia de “contagem de corpos” dos americanos no Vietnam.

Em vez disso, investiram um mínimo de forças para manter a posse das cidades e rodovias, limitando-se a operações de “busca e destruição” contra os guerrilheiros que ameaçavam estes pontos, enquanto procuravam reconstruir as forças armadas e administração afegãs. Todavia, mesmo perseguindo objetivos limitados, os soviéticos acabaram por enfrentar enormes dificuldades.

Na verdade, algumas características profundamente enraizadas das forças armadas soviéticas tornaram-se um instrumento inadequado para a guerra insurrecional. A boa comunicação radiofônica, o uso da inciativa pessoal e um alto padrão de liderança dos quadros jovens são ingredientes indispensáveis a qualquer estratégia antiguerrilheira. O desempenho inicial do exército soviético foi o reflexo de uma situação na qual apenas os oficiais mais graduados tinham acesso a equipamento de rádio; os mapas eram documentos de circulação limitada, emitidos somente para oficiais; não se permitia aos subalternos exercer seu julgamento e os sargentos, longe de serem figuras respeitadas que formam a espinha dorsal dos exércitos ocidentais, eram meras engrenagens administrativas.

Algumas das piores baixas em 1980 e 1981 foram devidas ao uso de carros de combate para escoltar comboios. A maioria dos carros de co,bate soviéticos possui torre baixa com domo, na qual a elevação, tanto positiva como negativa da arma principal, são bastante limitadas. Por este motivo, muitas vezes não tinham condições de combate atacantes posicionados em terreno alto

Mais tarde, o comando soviético substituiu boa parte dos carros de combate por VBTTs, mais flexíveis. No entando, os afegãos adaptaram-se à nova situação: iniciavam avalanches nas áreas montanhosas para bloquear os comboios, complementando-as pela destruição de pontes e colocação de minas. Quando as tropas soviéticas deixavam, relutantes, a proteção dos VBTTS antes de um contra-ataque efetivo, os “Mujahidim” dispersavam-se.

Uma das respostas para o problema foi o recrutamento de jovens do Cáucaso e outras áreas montanhosas da URSS, encaminhados à 105ª e à 109ª Divisões Aerotransportadas. Tais unidades tornaram-se divisões montanhesas em tudo, exceto no nome. Mesmo as divisões motorizadas de fuzileiros receberam treino em operações de montanha.

Foram adotadas, além disso, táticas semelhantes às americanas no Vietnam, viabilizadas pelas melhorias das comunicações. Os comandantes dos comboios ameaçados passaram a dirigir contra o inimigo o fogo de artilharia dos campos fortificados, desde que estivessem dentro do alcance e a receber considerável apoio aéreo. Os aparelhos sediados na base aérea de Bagram (norte), Kandahar (sul), Shindand e Herat (oeste) dispunham de sofisticados armamentos ar-solo e podiam atingir qualquer ponto do Afeganistão em minutos.

Entretanto, aeronaves rápidas de asas fixas tem dificuldade para localizar e atingir com precisão alvos específicos nas montanhas. Por este motivo os soviéticos passaram a utilizar o napalm e outros produtos químicos em suas operações, devastando com um único ataque toda a encosta de uma colina; a política de “terra arrasada” também foi aplicada às aldeias onde se abrigavam os guerrilheiros. O resultado foi o esvaziamento de inúmeros vales e a intensificação do fluxo de refugiados, que chegou a 120 mil por mês em 1981-1982.

Outra “lição do Vietam” foi o emprego em escala maciça dos helicópteros, que disputaram com os guerrilheiros o domínio do terreno montanhoso. As versões mais empregadas foram o Mil Mi-8 “Hip”, o Mi-24 “Hind” e o gigantesco Mi-26, utilizados como transportes de tropas e aeronaves artilhadas. Entre suas mais notáveis características está a solidez da estrutura, capaz de absorver pesado atrito pelo fogo antiaéreo. No entanto, as nevascas e as ondas térmicas imprevisíveis podiam ser fatais a esses aparelhos, arremessando-os contra as montanhas; também são vulneráveis aos mísseis SAM similares ao SA-7 “Grail”, de fabricação soviética. O fato dos helicópteros empregados no Afeganistão liberarem posteriormente uma série de clarões-chamarizes (flares), sugere que pelo menos alguns deles foram vítimas desse gênero de ataque.



A Guerra no Vale do Panjshir

O desempenho dos combatentes no Afeganistão pode ser avaliados ao longo dos 5 anos de confronto pelo domínio do vale do Panjshir, ao norte de Cabul. Trate-se de um vale estreito de mais de 100 km, circundado por altas montanhas e cortado por uma série de vales menores.O terreno é ideal para a luta de guerrilhas. Estima-se que seriam necessárias de 4 a 5 divisões para sua ocupação efetiva. Os “Mujahidim” o dominavam desde 1980, com cerca de 10 mil homens altamente experientes e treinados. Suas incursões a partir deste vale impunham um severo castigo aos comboios soviéticos que atravessavam o Hindu Kush pelo túnel Salang e seguinam para a capital afegã.

Os guerrilheiros de Panjshir, pertenciam a organização Jamiat-i-islami (Sociedade Islâmica). Eram comandados por Ahmed Shah Massoud, um ex-estudante de 30 anos que iniciou suas operações com apenas 30 homens e 17 fuzis antiquados. Em 1980 e 1981, Massoud resistiu a 4 ofensivas; a primeira ameaça real veio em maio de 1982, com a chamada operação Panjshir 5. A ofensiva começou em 10 de maio, com o fechamento da boca do vale e fortes bombardeios aéreos e de artilharia. Em 17 de maio um batalhão soviético foi transportado por helicópteros para uma posição elevada. Simultaneamente, uma força terrestre começou a subir o vale.

Entretanto, os guerrilheiros infligiram pesadas perdas ao batalhão aeromóvel. Em seguida, bloquearam o avanço da divisão motorizada de fuzileiros Nevel-Polotsk e Da Brigada Comando 444 do Exército Afegão.Uma coluna de carros de Combate T62 e VBTTs foi submetida a ataques incessantes e não conseguiu deslocar-se para fora da estrada, caindo vítima dos campos minados da guerrilha. Em resumo, ao atacar a vanguarda das colunas, os guerrilheiros paralisaram o avanço das tropas soviéticas e não deixaram que elas explorassem sua superioridade em equipamentos.

A operação Panjshir 6, em agosto de 1982, mostrou que os soviéticos haviam aproveitado as lições de maio. Foi dada maior atenção ao bombardeio preparatório realizados por aeronaves, incluindo helicópteros artilhados Mi-24. A ofensiva principal inciou-se em 30 de agosto. As tropas soviéticas consolidavam cada estágio de seu avanço por meio de ataques secundários aos vales laterais, por onde os “Mujahidins” se retiravam. Na verdade, os soldados não tinham pressa em abandonar a segurança dos VBTTs para persegui-los.

No final de 1982 foi estabelecida uma trégua tácita, que deixavam Panjshir sob o controle de Massoud. Seguiu-se um cessar-fogo oficial, firmado em março de 1983. O comando soviético utilizou a trégua para atacar a guerrilha em outros pontos; Massoud aproveitou para ajustar contas com os guerrilheiros do Hizb-i-Islami (Partido Islâmico), que propunha a união dos patãs do Paquistão e do Afeganistão num novo país, o Pushtunistão. Violentamente hostis aos militantes da Jamiat, em geral recrutados entre os taijiques e os uzbeques, os combatentes do Partido Islâmico haviam bloqueado o norte do Panjshir e cortado os suprimentos dos homens de Massoud enquanto os soviéticos atacavam pelo sul.

Em abril de 1984, Massoud sentiu-se forte o bastante para retomar a ofensiva. Suas tropas montaram uma série de operações ao longo da estrada Salang-Cabul, empreendidas por vários destacamentos de 500 homens. Mas os soviéticos estavam preparados: dezenas de guerrilheiros foram mortos num contra-ataque feito por helicópteros. Logo em seguida, em 21 de abril. O comando soviético lançou a 7ª ofensiva contra o vale do Panjshir, mobilizando 20 mil homens, 600 blindados e 60 helicópteros. Foram realizadas 30 incursões aérea diárias sobre as posições guerrilheiras. Além disso, pela primeira vez os soviéticos recorreram aos bombardeios de grande altitude, empregados com efeito mortífero no Vietnam.

Entretanto, não houve resistência. Massoud retirou a população civil do vale e seguiu com seus guerrilheiros para posições menos expostas, depois de explodir várias pontes vitais para o abastecimento da capital. No início de maio, os guerrilheiros admitiram a perda – temporária – de Panjshir, embora continuassem a dispor de condições para fustigar as colunas e os comboios soviéticos. Segundo vários analistas ocidentais, o êxito decorreu de uma flexibilidade tática que não era associada ao Exército Soviético desde sua entrada no país em 1979.


Quais frutos os soviéticos colheram?

Nos últimos meses de 1984, uma violenta campanha de bombas em Cabul mostrava que os “Mujahidim” pretendiam festejar ao seu modo o quinto aniversário da invasão. Eram lançados foguetes contra alvos militares e contra bairros residenciais, causando pânico à população civil. Em 1º de janeiro de 1985, vigésimo aniversário da fundação do PDPA, o esquema de segurança em Cabul era integrado por 60 mil soldados afegãos e soviéticos, e os atentados a bomba prosseguiam.

Tudo isto coloca algumas questões interligadas: Será que valeu a pena intervir no Afeganistão? Valeu a pena desgastar a imagem da URSS junto ao Terceiro Mundo, e em particular junto aos países árabes, para impor aos afegãos um regime impopular? Compensou despender 3 bilhões de dólares anuais e sofrer 20 mil baixas (de 1979 a 1985) para sustentar um governo que controlava apenas 20% do território do país?

Muitos analista responderiam afirmativamente a tais perguntas. Em sua opinião, a URSS obteve, a um custo mínimo – 5 mil baixas fatais, em 5 anos – vantagens estratégicas consideráveis.

Em termos estritamente militares, os soviéticos receberam lições valiosas no tocante a luta anti-inssurecional. A política de rotação de unidades permitiu, inclusive, que um maior número possível de tropas adquirisse experiência real de combate na “dura” escola dos guerrilheiros afegãos.

Em termos estratégicos, uma das vantagens da intervenção foi a “limpeza” do vale do Wakham, entre o Afeganistão e a China. As populações locais foram substituídas por habitantes da Ásia Central Soviética; não é difícil imaginar que os armamentos ali instalados ultrapassem de muito as necessidades da luta anti-insurrecional.

Além disso, a Força Aérea Soviética “desceu” pelo menos 300 km para o sul, aproximando-se do Golfo Pérsico. Suas aeronaves puderam a partir daí, dar cobertura às forças navais soviéticas no Índico. Segundo alguns analistas, só esta presença justificou amplamente a intervenção.

Mas havia um aspecto adicional: aparentemente os soviéticos encontraram-se no Afeganistão para ficar, não para transformá-lo em mais uma república soviética na Ásia Central, embora esta possibilidade não estivesse excluída; mas pelo menos, para torna-lo um estado cliente nos moldes da Mongólia. Os últimos soldados soviéticos abandonaram o território afegão em 15 de fevereiro de 1989, 10 anos depois de terem invadido o país para derrubar e, ao mesmo tempo, apoiar um regime que teria solicitado a ajuda soviética. A longa resistência dos afegãos não pode ser vencida, e assim a União Soviética, uma então potência mundial, se viu obrigada a retirar seus soldados sem ter ao menos uma vitória simbólica para reclamar. As tropas soviéticas, durante tantos anos tão temidas no Ocidente, foram derrotadas e expulsas por um exército de combatentes medievais, os “Mujahidins”, demonstrando que a superioridade militar das grandes potências permite a invasão com certa facilidade dos territórios do terceiro mundo, porém, a manutenção da ocupação destes territórios não é tão fácil quanto parece, e os movimentos de resistência que se formam podem ser muito difíceis de serem vencidos.

Militares e administradores afegãos estudam na URSS, mais de 7 mil crianças foram enviadas para o Uzbequistão e outras repúblicas soviéticas. A URSS absorveu a produção de gás natural, peles e couros do Afeganistão; engenheiros soviéticos construíram a primeira ferrovia afegã. Em termos políticos imediatos, o cessar-fogo estabelecido com os “Mujahidins” do vale do Panjshir indicava a intenção de “conviver” com a guerrilha, e a administração do fluxo de refugiados no final de 1984, para 2.500 pessoas por mês, sugeriu uma “convivência com o invasor”. Tudo isso pode não ser muito significativo, mas afinal foi o que os bolcheviques fizeram, no passado, em relação aos territórios muçulmanos da Ásia Central integrados ao império Czarista. Uma geração depois, a “sovietização” desses territórios era uma realidade.